Se alguém quiser ver Eduardo Luiz, em Lisboa, Julho de 2007, já não tem o museu do CAM (haveria alguma obra em exibição?), mas tem, por acaso (!?), um quadro importante no Museu do Chiado e outro dos primeiros anos de carreira na Colecção Manuel de Brito em Algés. E tem na Antiks uma tela em exposição e outra nas reservas. Ao contrário do título do filme e das cismas de alguns críticos, E.L. não é um artista desaparecido nem desconhecido. O que acontece é que há muitos distraídos e/ou ignorantes.
A Grande Lousa, 1966, o/t, 97x130cm, Col. MC
O primeiro quadro referido é A Grande Lousa, de 1966, uma peça da antiga Colecção
SEC em depósito em Serralves (para quê? – para emprestar ao Chiado?),
que se vê numa mostra dedicada aos anos 60 dos séc. XIX e XX e ao que
neles se pode designar como “momentos transformadores” - por acaso também se lhes poderia chamar momentos de continuidade para referir a mesma coisa (continuidade da figuração, depois do seu interdito, continuidade da abstracção geométrica através dos contornos recortados, etc). Ao lado de E.L. estão Lourdes
Castro e René Bertholo, Escada e João Vieira, outros transformadores-continuadores.
Trata-se de uma das suas obras
maiores (também no formato) do período das lousas, onde o campo físico e
intencional da ilusão começa por se construir materialmente como tal: a
lousa é tela pintada a óleo e a moldura própria do quadro negro escolar
comprova os outros dotes do pintor artífice, carpinteiro exímio,
construtor ocasional de violinos. O artifício do quadro negro não é
gratuito: aí tem lugar uma lição de coisas, já agora um corpo nu de
mulher – ilusão e desejo com lugar maior na história da pintura, e do
imaginário em geral. Para representar o real e a ilusão serve a pintura.
Reaprender a coisa, o corpo, depois da abstracção, dos interditos da figuração, censuras várias.
A
lição do quadro negro: o corpo exposto, oferecido, mas em fragmentos e
recortado sobre o fundo liso, como condição aceite com ironia de modernidade,
acompanhado por exercícios de perspectiva e fórmulas matemáticas
(aprender, reaprender a pintura das coisas). Do fragmento à metáfora, a parte pelo
todo: a romã/seio, o gomo de laranja/triângulo púbico (e sobre ele um
longo parafuso), o nabo-”navet” no lugar da cabeça. Objectos de comer,
em mais uma inconveniência ou incorrecção, assim, no
quadro, se associando prazeres da pintura, da cama e da mesa. Os
críticos censores incomodam-se, claro (não são puritanos, mas estão de vigilância aos costumes, para parecerem úteis). (O filme mostra-os bem).
No
Museu, agora, a tabela com texto de Emília Tavares, é correcta ao
apontar o exercício máximo da ilusão, a metáfora sobre a criação e a
simbologia.
Onde terá sido exposto à época este quadro? Em Fev. de 1963 E.L. fez uma individual na Gal. Mouffe, em Paris (cat. c/ tx de Olivier Burgelin - ver ed. Ygrego, 1989, p. 106. Em 1959 tinha ido à Bienal de S. Paulo; em 66 e 67 participou no Salon de la Jeune Peinture, Paris. Não há, entretanto, outros dados de 59 a 66 - excepto a colaboração com Pierre Kast e Chris Marker no filme La Brûlure de Mille Soleils, estreado em 1965, famoso e premiado - e esquecido. Onde haverá uma cópia?).
(* outra obra maior a justificar a visita ao Chiado é o Auto-retrato em Azul de Paula Rego, 1962, uma grande tela em vermelhos adquirida pelo Museu em 1974, quando as compras, melhores e piores, se faziam quase sempre na São Mamede.) Depois de Columbano, o Museu está vazio - ninguém sabe o que lá pode estar e muito poucos arriscam depois de uma ou duas más experiências.
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Em Algés está um Sem Título, 1959, óleo sobre tela, 89 x 130 cm, ao lado de Composição (ou a A Galinha Pedrez?), 1955-57 de António Quadros, pintor também oriundo do Porto e com quem partilhou o princípio da carreira. Uma primeira fase de figuração (nova?) estilizada, filiforme, gráfica e muito elegante. Pouco antes, em 1956, tinha feito os cenários para as Guerras do Alecrim e da Mangerona, que António Pedro (o camisa-negra auto-exilado, o democrata da BBC, o surrealista da Smarta, o ceramista do SNI, etc) encenou no TEP. Uma das minhas primeiras grandes memórias teatrais e uma impressão forte do Porto dos anos 50, com EL no TEP e Quadros na sala de projecções infantis da sede do Cine Clube, e ambos nas exposições da ESBAP. Só depois é que chegaram e se instalaram os Quatro 20 e os outros 20 todos a seguir.
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Quanto à Antiks, temos em exposição Le Baphomet, de 1974, uma das maiores telas de EL, de 170 x 71 cm - e nas reservas outra obra de grande força, Vertige, 1983, um círculo com um metro de lado onde se eleva nos céus um corpo nu de mulher.
Notas: O baphomet é um suposto ídolo dos templários, identificado como uma "cabeça barbuda", às vezes uma cabeça de bode sobre um corpo composto de diferentes elementos (um seio, asas, um disco, etc), "figure panthéistique et magique de l'absolu" (abbé Constant).
Baphomet (también Bafomet, Bafometo o Baffometo) na Wikipedia em espanhol; o português conserva o termo francês.
Klossowski escreveu um romance com este título (1964)
Segundo Eliphas Lévi, philosophe hermétique:
"Il existe plusieurs figures du Baphomet. Parfois il a la barbe et les cornes d'un bouc, la face d'un homme, le sein d'une femme, la crinière et les ongles d'un lion, les ailes d'un aigle, les flancs et les pieds d'un taureau.
C'est le sphinx ressuscité de Thèbes ; c'est le monstre tour à tour captif et vainqueur d'OEdipe. C'est la science qui proteste contre l'idolâtrie par la monstruosité même de l'idole. Il porte les cornes et le flambeau de la vie, et l'âme vivante de ce flambeau, c'est dieu. Il avait été défendu aux Israélites de donner aux conceptions divines la figure de l'homme ou celle d'aucun animal ; aussi n'osaient-ils sculpter sur l'arche et dans le sanctuaire que des Chérubins c'est-à-dire des Sphinx à corps de taureau et à têtes d'homme, d'aigle ou de lion.
Ces figures mixtes ne reproduisent dans leur entier ni la forme de l'homme, ni celle d'aucun animal. Ces assemblages hybrides d'animaux impossibles faisaient comprendre que le signe n'était pas l'idole ou une image d'une chose vivante, mais un caractère ou une représentation d'une chose pensée.
On n'adore point le Baphomet : on adore le Dieu sans figure devant cette forme informe et cette image sans ressemblance avec les êtres créés. Le Baphomet n'est pas un dieu : c'est le signe de l'initiation ; c'est aussi la figure hiéroglyphique du grand tétragramme divin..."
Eliphas Lévi, La Clef des Grands Mystères.
EL é um pintor erudito.
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