algumas exposições anteriores do MNE, a pretexto das "Cantigas Pintadas"
"A voz dos cestos"
A cestaria angolana das colecções do Museu de Etnologia é exposta pela primeira vez
Expresso/Actual de 30/08/2003
Família luvale atravessando uma reserva de caça no Alto Zambeze, Angola, 1965.
Fotografia do etnólogo António Carreira
Das fabulosas reservas do Museu de Etnologia saíram agora os cestos angolanos; é «A Vez dos Cestos», diz o título da exposição, sublinhando que se toma também por objecto de reflexão o próprio ineditismo do tema. «Colecção invisível», como escreve no catálogo a autora da exposição, a antropóloga Sónia Silva, a cestaria de Angola constitui um acervo volumoso e significativo entre as colecções do Museu (embora errático, não sistemático), mas só muito raramente alguns exemplares figuraram em mostras dedicadas às artes e culturas africanas, permanecendo sempre «na sombra da escultura». Também no âmbito dos estudos etnográficos sobre Portugal, a cestaria nunca foi objecto de abordagem específica. A mostra não é, no entanto, apenas um mergulho nas reservas históricas do museu, nem se detém no inventário e classificação das suas espécies, mesmo se é com a imensa diversidade dos objectos de cestaria - peneiras e tampas, esteiras, armadilhas ou gaiolas, cintos e adornos, e cestos das mais inventivas e belas formas - que se constrói o espectáculo expositivo.
Conjugada com um catálogo de assinalável teor ensaístico (mas escrito de forma acessível mesmo para o espectador leigo), a exposição desdobra-se num tríptico que acompanha a história recente da sociedade angolana, ao mesmo tempo que se constrói como uma interrogação metódica sobre a natureza das colecções, os interesses dos etnólogos e as circunstâncias e critérios da recolha dos objectos. A par da identificação da cestaria através dos elementos materiais e das características funcionais que a associam ao quotidiano e a práticas económicas quase sempre de subsistência, e ainda a par da sua valorização enquanto objectos esteticamente apreciáveis, é a própria investigação antropológica e a prática museológica que é explorada numa multiplicidade de leituras e níveis fluentemente articulados. Com um olhar exterior ao Museu Nacional de Etnologia - Sónia Silva doutorou-se na Universidade de Indiana com uma trabalho sobre cestas de adivinhação -, é igualmente a sua respectiva história desde 1965 e a acção dos seus fundadores que é habilmente colocada em perspectiva.
Peneira para farinha de mandioca, adquirida em 2002 em Chavuma, Zâmbia
As três secções da mostra são dedicadas ao acervo reunido pelo museu até à independência de Angola (de facto, até 1972, com 779 espécies); ao período da guerra civil entre 1975 e 2002, durante o qual não se recolheram mais objectos, e, por último, à pesquisa realizada recentemente pela própria Sónia Silva em Chavuma, Zâmbia, entre populações emigrantes e refugiadas, maioritariamente de etnia luvale. Em grande medida, é este último período de investigação e recolha que fornece as linhas metodológicas que iluminam todo o percurso, questionando as condições em que se realizaram as anteriores colecções, quem as conduziu e com que interesses ou critérios. A zona intermédia da guerra civil surge como um intervalo na exposição, preenchido com fotografias de diversas origens (fotojornalistas, padres e organizações humanitárias), que testemunham indirectamente a presença quotidiana de cestos e objectos afins, como esteiras, adornos e chapéus.
Resultante de estadias prolongadas na região, a pesquisa recente é apresentada de um modo concreto e personalizado, acompanhando-se as peças recolhidas com fotografias e relatos (no catálogo) que identificam a investigadora e as pessoas com quem contactou, ao mesmo tempo que se fornecem indicações sobre o uso dos objectos, origens e condições de fabrico, tradições e respectiva evolução, alargada ao que os luvale designam como «coisas de hoje», introduzidas pelos europeus. Também elas são incluídas na recolha, assim como recipientes de plástico e de metal de produção industrial que substituem objectos tradicionais, o que conduz, por fim, à interrogação sobre o conceito etnográfico do objecto autêntico, usado e anónimo.
Sobre o primeiro corpo da mostra, o mais extenso, projectam-se as questões levantadas pela recolha mais recente, sinalizando, por exemplo, a falta de documentação sobre os objectos vindos da antiga Agência Geral do Ultramar, por vezes associados à Exposição do Mundo Português, ou oriundos da Companhia de Diamantes de Angola e de doações de funcionários administrativos, bem como as condições e critérios com que outros foram recolhidos em Angola por elementos da equipa de investigadores do museu e seus colaboradores. Aos objectos juntam-se fotografias que acompanharam as recolhas (chamando-se a atenção para a actividade de Benjamim Pereira como fotógrafo), registos documentais de várias origens e, em especial, as próprias figuras de etnólogos ou colectores como Ernesto Veiga de Oliveira, Vítor Bandeira, Jorge Dias e Margot Dias, num efeito simétrico de personalização das recolhas.
«A Vez dos Cestos» é também a oportunidade de fazer ouvir a voz de objectos que, expostos no museu, nos falam ainda daqueles que os fabricaram e usaram, mas igualmente dos que os recolheram e coleccionaram. E certamente ainda dos que agora os estudam ou contemplam.
A Vez dos Cestos
Museu Nacional de Etnologia, até 2004
#
E para lembrar a ameaça ao Museu de Arte Popular - MC
Comments