"História e ficção"
Seis artistas no centro de uma década prodigiosa
EXPRESSO/Actual de 01-05-04
O grupo homeostético chega ao contacto com o «grande público» cerca de 20 anos depois do desenrolar das suas actividades, mas as obras e o seu espírito não ganharam uma ruga. Sob esse nome reuniram-se seis artistas: Pedro Proença, Manuel João Vieira, Pedro Portugal, Xana, Ivo e Fernando Brito. Nascidos entre 1958 e 1963, frequentaram a Escola de Belas Artes de Lisboa na primeira metade dos anos 80 e realizaram cinco exposições de grupo - duas na Escola (1983), uma em Portimão e outra em Coimbra (1984 e 86) e a última na SNBA (1986), a única que teve alargada visibilidade, em parte graças ao braço musical homeostético, os Ena Pá 2000, de M. J. Vieira. Intitularam-na «Continentes», em resposta ao «Arquipélago» exposto no ano anterior, no mesmo local, por Calapez, Croft, Cabrita Reis, Rui Sanches, Rosa Carvalho e Ana Léon (todos mais velhos, mas de afirmação mais lenta), e aí exibiram cinco quadros de 10 metros e grandes esculturas pintadas, ocupando-se cada um da sua parte do globo.
O nome obscuro que usaram, sem nele diluírem as assinaturas pessoais, acompanhava breves textos onde cultivavam a incoerência ou mesmo a ilegibilidade programática e uma pose irreverente e paródica, que divergia da seriedade profissional com que nessa época se construía um novo panorama, marcado pela constante emergência de jovens artistas. Depois dos anos da efervescência política, chegara um tempo de euforia criativa, numa era pós-moderna de reabilitação da pintura, diversidade estilística e livre apropriação de referências históricas. Os homeostéticos interpretavam o espírito da época com uma atitude de distância irónica que nunca os reduz a documentos de um tempo passado.
A exposição, comissariada por Marta Moreira de Almeida em cumplicidade com os artistas, reúne obras de 1982 a 1987/88 (quando decidem suspender as intervenções colectivas), num itinerário que não é cronológico nem compartimentado por autorias, embora assegure a cada um a representação nítida da sua individualidade no seio do grupo.
Dos que prosseguiram carreiras mais visíveis, recordam-se as posições de partida e logo a definição das linguagens próprias; para os de percurso mais discreto, esta é a oportunidade de desocultar obras de grande frescura criativa - e, no caso de Ivo, de (re)descobrir as qualidades de um pintor cujas aparições mais recentes terão passado talvez injustamente desapercebidas. O seu trabalho não partilha do humor estridente dos restantes, vindo em geral da banda desenhada, e filia-se antes numa relação sólida com o expressionismo abstracto norte-americano.
Proença e Xana aparecem como os artistas mais inventivos e também mais produtivos, o primeiro na via de uma poética narrativa e tão culta como bem humorada, o segundo explorando a alegria de uma visualidade brincada. A «bad painting» de conteúdos histórico-mitológicos em versão paródica de Vieira ficava definida, e Portugal formulava já a passagem para uma atitude autocrítica. Fernando Brito expõe alguns desenhos e pinturas assinaláveis, a que não daria sequência pública. Aliás, a euforia e a pulsão (auto)destrutiva estão sempre presentes no grupo, sob a máscara da irrisão - falar em dadaísmo diminui-lhes a originalidade.
O catálogo é uma peça essencial desta operação e é através dele que o sentido da acção do colectivo se pode (só) agora apreender globalmente. Um corte radical na fotobiografia e alguma contenção na recolha de textos torná-lo-iam mais eficaz, mas prevaleceu o gosto pelo aparato institucional.
Nele se recolhem manifestos que em geral só existiram como manuscritos sem circulação exterior ao grupo e também a torrencial produção escrita (poética ou ensaística, mas sempre delirante) de Proença, que aparece a sustentar a intervenção plástica do colectivo. Por outro lado, publica-se um longo e notável ensaio de Jorge Ramos do Ó, particularmente atento ao corpus escrito e aos sentidos da actuação homeostética, de que dá uma leitura inédita, por vezes polémica. É uma peça rara no actual contexto da produção crítica.
Tomando por tema único a actuação colectiva, dá-se visibilidade às obras expostas nas iniciativas conjuntas (acrescidas de inéditos, em especial de Ivo e F. Brito) e revela-se o «continente» oculto que foi a sua produção escrita. Não se trata, porém, de fazer história, em sentido preciso, mas antes de revelar, ou melhor, de ampliar o que foi a brilhante criação ficcional de um movimento.
Os textos do catálogo não se interessam por situar o grupo no contexto da década de 80 e omitem as referências às exposições individuais que alguns começaram a fazer a partir de 1984 (primeiro Proença, seguido em 85 por Portugal e Xana); por ocasião de «Continentes», Proença já fizera quatro individuais e Portugal três. Também se omitiram as aparições em colectivas e noutras exposições em grupo - Brito em «Figuração, Narrativa»; Proença e Portugal em «Situação II. Uruborus», na Módulo; todos os outros, sempre em 1984, em «Novos Novos», na SNBA, onde também expôs quase todo o grupo «Arquipélago» (Cabrita, Calapez, Sanches, etc.), este com uma prática muito mais individualista. É também total o silêncio sobre as novas alianças que fizeram vários homeostéticos a partir de 87.
Ao recortar intencionalmente uma história parcial e portanto ficcionada, os artistas e os organizadores da exposição, seus cúmplices, deixam encoberta (com o rabo de fora) a dupla existência do grupo. De facto, tudo leva a crer que, sobre uma forte amizade juvenil, a intervenção homeostética se prolonga e ganha projecção, desde 1984, graças às carreiras individuais dos seus membros mais activos, tornando-se uma espécie de pseudónimo colectivo para uma acção ao mesmo tempo lúdica, crítica e habilmente mediática no confronto então crescente entre notoriedades, posições e oportunidades institucionais.
Sem se poder sumariar aqui a dinâmica desses anos, em que sucessivas vagas de jovens artistas se afirmam ainda enquanto estudantes de uma péssima Escola (serão preferíveis as más escolas de arte?), recorde-se que a sua data inaugural se situa em 1981, com a mostra «Talentos Emergentes» (Pedro Casqueiro, Ana Vidigal, Alda Nobre e outros), na galeria Leo, por iniciativa e com apresentação de Sílvia Chicó, que deu projecção a uma primeira aparição colectiva na ESBAL. Parte essencial dessa dinâmica passava pelos grandes acontecimentos que eram então as bienais de Cerveira (desde 1980), Lagos (82 e 84), Chaves (83) e Campo Maior (84) e também pelos salões da SNBA, com destaque para a iniciativa «Novos Novos», que em 1984 reuniu 86 jovens autores - Sílvia Chicó interveio também aí, e Eurico Gonçalves prefaciou o catálogo, enquanto Fernando de Azevedo escrevia nos primeiros catálogos de, por exemplo, Ana Vidigal e Pedro Portugal (este em 85). Pouco antes, a AICA (associação de críticos) apresentava uma selecção de 12 jovens (Ivo, Miguel Branco, F. Fragateiro, etc.) com apoio do «Jornal de Letras». Com o dinamismo colectivo muito alargado de uma década prodigiosa, era intensa a luta pela demarcação de grupos e individualidades, mas a história seria depois escrita em função dos interesses dos «vencedores», articuladamente com a recomposição do poder na área das artes.
A muito falada operação «Depois do Modernismo» (Janeiro de 83, paralela à mostra de estudantes «11 Anos Depois», ESBAL) foi uma manobra de «aggiornamento» de artistas vindos da década e de atitudes anteriores, organizada como conquista do poder. Só nessa medida é possível classificá-la como uma mudança de paradigma, como faz João Fernandes no catálogo, não sendo também correcto falar de «fechamento crítico-institucional relativamente às novas gerações de artistas», como diz Marta M. de Almeida. Consultem-se as várias sínteses históricas já publicadas sobre este período e encontrar-se-ão, a par dos muitos erros cronológicos e factuais, omissões intencionais e manipulações várias ao sabor de interesses de ocasião. Um dos méritos desta mostra (com o seu calculado silêncio sobre a cronologia desses anos) é pôr radicalmente em causa as memórias que foram sendo produzidas sobre este período tão entusiasticamente criativo.
6=0 Homeostética
Museu de Serralves, Porto, até 4 de Julho
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