De visita ao arquivo, a propósito das Pinturas Cantadas das mulheres de Naya, Bengala, Índia, a arte das mulheres esquimós Inuit do Canadá.
Expresso de 22/9/2001
"Construir a tradição"
Gravuras e esculturas de nove mulheres artistas do Canadá
ISUMAVUT: A Expressão Artística de Nove Mulheres de Cape Dorset
(Museu de Etnologia, Até 16 de Dezembro)
ver: Isumavut: The Artistic Expression of Nine Cape Dorset Women - Isumavut
As paredes brancas lembram as superfícies geladas do círculo polar ao mesmo tempo que conferem ao espaço do museu a aparência habitual de uma galeria de arte. Uma exposição vinda do Canadá dá a conhecer exemplos do que hoje por vezes se designa como arte autóctone contemporânea, numa das suas numerosas variedades regionais. É para o Museu de Etnologia uma orientação algo diferente da sua actividade regular, na qual a dimensão estética dos objectos não é geralmente valorizada por si mesmo enquanto arte, já que aquela não se separa das funções utilitárias, rituais e simbólicas das peças expostas, tomadas como representação de uma cultura tradicional.
A exposição vem do Museu Canadiano das Civilizações - link , de Otava, e apresenta 92 obras de mulheres artistas inuit, ou esquimós, segundo a designação usada até há pouco. Organizada em 1992-94 e colocada depois em itinerância, foi trazida a Lisboa pela Comissão dos Descobrimentos no quadro das celebrações dos 500 anos da chegada dos irmãos Corte Real à Terra Nova e é constituída por gravuras, desenhos e esculturas, sempre acompanhadas por breves textos nos quais as artistas inuit comentam ou elucidam aspectos das suas obras e da sua vida. O título «Isumavut», seguido por «A Expressão Artística de Nove mulheres de Cape Dorset», traduz-se por «o que nós pensamos» ou «a nossa opinião», e é através desses testemunhos que se pode conhecer o contexto cultural de que as obras emergem.
Não são formas de arte tradicional que se expõem, mesmo que os temas das obras quase sempre se refiram a antigos modos de vida da população esquimó do Canadá. A utilização predominante da gravura em pedra e da litografia a cores, em provas impressas de grande qualidade, alerta-nos desde logo para técnicas e condições de produção que não são habituais na arte popular. Por outro lado, a criação artística na antiga sociedade inuit, conhecida através da produção de pequenas esculturas em marfim, osso e pedra, era exclusivamente uma actividade masculina.
O que é especialmente significativo nesta mostra, para além da beleza das obras, é o facto de ela documentar a criação de uma arte autóctone (e também do artesanato que lhe está associado) que tem como destinatário a população branca do sul, surgida numa situação de transformação radical das condições de vida da respectiva população e constituindo-se rapidamente como uma actividade económica significativa, em parte alternativa ao colapso do comércio tradicional das peles. Para uma população activa que ronda as dez mil pessoas, num total de 25 mil habitantes, o número dos artistas e artesãos oficialmente reportoriados ascende a quatro mil. Fortemente estimulada pela administração do Canadá, que lhe assegurou um mercado museológico, galerístico e «turístico» de grande dimensão, adoptada, simultaneamente, como arte oficial e como verdadeira indústria de exportação, a produção dos artistas inuit está também intimamente associada ao processo de afirmação da identidade cultural do seu povo e de conquista da autonomia política, que conduziu, já em 1999, à criação da nova região administrativa do Canadá, Nunavut.
Na década da 50 tinha-se completado a sedentarização da população inuit e também a destruição da sua economia de subsistência. Na década seguinte, Cape Dorset, uma povoação que tem hoje 1500 habitantes, no sul da ilha de Baffin, tornava-se a capital artística da região sub-ártica por influência directa de James Houston, um artista de Toronto que aí se instala e introduz a prática da gravura, segundo métodos aprendidos no Japão, promovendo a fundação de uma cooperativa pioneira a que estão associadas várias das artistas apresentadas. Os seus testemunhos na exposição e no catálogo dão conta do estímulo económico directo que esteve na origem desta produção artística, orientada intencionalmente para a fixação de testemunhos sobre as formas tradicionais de vida.
Usando temas da fauna do ártico e cenas da vida quotidiana ou da caça tradicional, a par de representações de espíritos e imagens mitológicas e chamânicas, numa direcção mais livremente imaginária, estas obras constroem a memória colectiva e local de uma sociedade em mudança.
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