1 - Como passa uma colecção a museu? Uma pista para a resposta é a
disponibilização de um edifício, o que legitima entretanto o nome. As
ideias de sedimentação ao longo do tempo, de extensão e exaustividade,
de escolha e representatividade são em grande medida dispensáveis,
agora, por evolução recente das coisas. De excelência e excepção não se
deve falar.
O edifício tem de facto muitas qualidades. Fica no centro histórico,
recupera o antigo hospital da Misericódia, é branco e amplo, sem ser
demasiado grande. Aquirido em 2002 pela Câmara Municipal, com objectivo
de ser
transformado em instituição museológica, foi adaptado por
uma equipa multidisciplinar constituida pelo arquitecto Pedro Reis e
pelos designers Filipe Alarcão e Henrique Cayatte. Contou com os
adequados fundos comunitários. ver site
escultura de João Pedro Vale e pintura de Pedro Calapez
2 - Há (mais) uma razão para ir a Elvas, ou passar por. Em Badajoz a colecção (MEIAC) é ibero-americana (estremenha, espanhola, portuguesa e latino-americana) e é moderna e contemporânea (com ilustres "extremenhos", como Timoteo Pérez Rubio!), mas tem uma dinâmica intermitente; em Malpartida, além da paisagem, há Vostell e artistas relacionados, cada vez menos contemporâneos como as histórias da transumância que são um dos momentos fortes da visita; em Cáceres, onde existe um precioso casco histórico, haverá a colecção internacional de Helga de Alvear. Não estamos na primeira linha, não nos enganemos.
Aliás, a ideia de colecção (museu?) de arte contemporânea é um pouco esdrúxula, uma facilidade de linguagem. Pode vir a ser, com o tempo, continuando, fazendo escolhas, preenchendo lacunas, escondendo logros momentânos, revisitando curiosidades pontuais. Mas à partida é como uma biblioteca onde se juntassem só os novos livros que vão saindo. Aliás, só livros de novos autores e só portugueses.
Por mais estimável que seja o propósito, um acervo de jovens artistas é uma colecção de promessas. Às vezes, talvez de achados, outras vezes de trabalhos de bons alunos. Está-se muitas vezes a confundir artistas com licenciados em arte... Museu é outra coisa. E a arte contemporânea é contemporânea por muito pouco tempo. Temos sido contemporâneos de muitas coisas diferentes e sucessivas. Iremos habituar-nos, também neste domínio, a usar e deitar fora? Coisas e pessoas.
3 - Abrindo como museu, o que se apresenta em Elvas é uma exposição, à qual se chama colecção: "Colecção António Cachola: Uma Colecção em Progresso – Parte I", no Museu de Arte Contemporânea de Elvas, o MACE. Uma escolha da colecção, mas não, certamente, uma escolha só do melhor da colecção, para que outras obras se reservem para próximas remontagens.
Como as palavras voam, um jornal, o Público (Ípsilon), podia pôr assim em destaque o acontecimento triplo (Museu, colecção, exposição): "Uma colecção que cumpre a função que mais nenhuma instituição nacional cumpre: mostrar a arte mais recente que se faz por cá". Julgar-se-ia que as galerias mostram em permanência e sucessivamente a arte mais recente, e que as instituições (museus, centros de arte) deveriam usar de alguma distância cronológica (mostrar o que importa rever, exercitando e pondo à prova a escolha do que mais importa) e também a distância geográfica (o que se faz lá fora agora, quando o mercado tem grandes carências logísticas). Mas o que mais fazem e têm feito quase sempre, quase todas as instituições, é mostrar a tal arte mais recente, a que circula nas galerias - por falta de meios para fazer melhor; por ambição dos seus directores actuarem sobre a dinâmica do mercado mais efémeramente actual, já que faltam condições para mais elevados desígnios. O Público, aliás, sempre que se referiu ao museu inaugurado no CCB chamou-lhe polémico e lembrava as amplas reservas de amplos sectores do nosso pequeno mundo (?) da arte. Elvas realizou-lhe as ambições e definiu-lhe os horizontes. Tudo em bastante pequeno.
4 - Colecção tem um diferente sentido quando é entendida como acervo pessoal, conjunto privado de obras, ou quando é projectada como acervo público, núcleo de peças em exposição pública. No segundo caso fica sujeita a um escrutínio que lhe exige um argumento específico, para além das acidentais circunstâncias das aquisições, e também uma estratégia de montagem, uma "lógica" que não seja só a resposta ao espaço disponível.
Em Badajoz, em 1999, João Pinharanda usou no espaço vasto do MEIAC três tópicos de grande espectro para segmentar o itinerário, balizado por algumas compras que fez para a ocasião: imagens do corpo, as determinações do lugar, linguagem e decoração (esta seria uma abordagem irónica do que resta dos códigos modernistas). Em 2005, quando voltou a ser chamado para criar uma imagem pública para o coleccionador conforme com o que se julga ser um coleccionador, optou por uma distribuição aleatória.
A adaptação do hospital a lugar de exposições é limitada pela configuração das galerias, que são extensas em comprimento e não favorecem a aproximação frontal às obras, e em especial aos quadros - o caso mais óbvio é a pintura de João Jacinto, em especial quando fica sujeita à iluminação de um projector lateral.
Como sucedia no Reina Sofia, outro hospital, a escultura tem uma presença mais confortável. No caso de Joana Vasconcelos, com A Noiva, montada na capela, entre azulejos quase profanos, e com Wash and Go à passagem. Ou a grande árvore de João Pedro Vale, A culpa não é minha, 2003. E Ângela Ferreira, Marquise, 1993, com os seus documentos fotográficos (e ainda sem demagogias políticas). Mas José Pedro Croft acentua uma direcção de trabalho que é só decorativa, escusada.
Na escadaria nobre, Jorge Molder, com três auto-retratos em sofrimento, deslocados nesse espaço de acolhimento (não de recolhimento), mais um desenho também a preto e branco de Pedro Calapez e em cima, elevada, a escultura negra de Rui Chafes - a única certa com o lugar. A cor seria bem vinda nesse espaço luminoso e Molder, que está muito bem no CCB-MCB, é excêntrico na colecção, atendendo ao seu horizonte cronológico, que cobre as aparições dos anos 80 (Sarmento estaria também fora, apesar de muito referido, talvez por hábito).
O acervo exposto e o conhecido regista, a partir do final dos anos 80, algumas das aparições dessa década, e faz algumas escolhas na seguinte - não recua a promoções anteriores (Sarmento, Calhau, José de Carvalho, Barrias, Graça Morais, Palolo) nem acolhe as mutações maiores desses anos, como Paula Rego, Dacosta, etc. O horizonte da colecção é estreito. Veremos com a continuação se a prática é a de pegar e largar, quando os artistas revelados nos 80 e 90 que se confirmam com a evolução do seu trabalho se tornarem artistas caros, passando a outros sucessivos jovens e prometedores artistas, ou se a colecção se sedimenta e valoriza com obras que sejam a confirmação das carreiras. Mais uma vez, uma colecção de promessas será um museu de curiosidades rapidamente relegadas para o esquecimento.
Na dispersão das obras e dos artistas no itinerário expositivo há peças para diferentes critérios, peças que já consumiram a sua curiosidade inicial, peças que resistem, acertos e desacertos (a Ala Norte de Cabrita Reis, tem uns 11,6 metros que são excessivos para o espaço de que dispõe).
É, em vez de um museu, mais do que uma colecção, uma mostra colectiva guiada pelo gosto do comissário, pelas suas afinidades e anteriores apostas. Fica a convicção que a montagem mais acertada mostraria em sucessivos núcleos as várias obras de alguns artistas (aqui aparecem em pontos diferentes, isoladamente). Menos artistas com mais obras cada. Esse é um dos méritos da colecção (ter acompanhado já alguns artistas em diferentes momentos). Mas essa montagem escolhida esgotaria talvez as disponibilidades do acervo.
O seu texto é correcto e exigente, mas um pouco cruel, tendo em conta que o museu está "apenas a começar". Dir-se-ia: mas era preciso que tivesse começado muito melhor - e é verdade - mas estamos em Portugal, atrasados muitas décadas no campo da museologia da arte moderna (e vamos já na "contemporânea"!). Por outro lado, as experiências de curadoria de colecções e museus têm sido limitadas a meia dúzia de casos. A falta de confrontos com o público e o insuficiente estudo de obras e autores, também não estimulam a exigência nem favorecem a qualidade dos projectos.
Nada disto serve de desculpa nem de consolo, bem sei, mas há que valorizar neste museu (ou promessa de museu) o ter sido pioneiro no interior do país (juntamente com a FAP, de Ponte de Sôr). Valorizar também a dignidade do tratamento do espaço e a "pedrada no charco" que o museu significa numa cidade pequena do Alentejo, quando as cidades capitais de distrito ainda não sairam da letargia.
O prazer da visita que fiz há dias ao MACE, suplantou a decepção. Penso que um bom museu precisa de tempo, de criar raízes, e que vale a pena manter a expectativa partindo do que já existe, estimular o crescimento (work in progress), acreditar que as lacunas da colecção serão preenchidas e os seus critérios reformulados. Tanto mais que se tal não vier a acontecer, o museu definhará.
Posted by: Roteia | 07/18/2007 at 03:47
Tem-me acontecido considerar-se crueldade o que é exercício livre de reflexão. De modo algum pretendia diminuir o interesse do museu ou da colecção, que é de facto mais uma razão para se ir a Elvas, nem da exposição, que, necessariamente e como entende melhor, adapta as existências às opções críticas do seu responsável. Quis situar o acontecimento num plano mais genérico: o modo de entender uma colecção de arte contemporânea, a concentração dos coleccionadores institucionais (privados ou públicos) sobre a emergência e a rotação de jovens artistas, o mercado das "promessas" e dos bons alunos.
Aliás, esta é uma colecção central, de modo algum uma colecção periférica ou regional. Não precisa de ser tratada com qualquer condescendência por se situar na "província".
Posted by: ap | 07/18/2007 at 17:47
Com a devida vénia irei reproduzir o seu texto no meu blogue dado partilharmos visões e ser assim uma opinião exterior ao Mace e a Elvas.
Bem Haja.
Posted by: Zé de Mello | 07/18/2007 at 21:44
caro alexandre
quero introduzir um reparo factual no teu "exercício livre de reflexão" a propósito do MACE.
Eu não fui chamado em 2005 "para criar uma imagem pública para o coleccionador". Fui contratado no Outono de 2006 para director de programação de um Museu que acolhe uma colecção que o Dr. António Cachola desenvolveu sem real acessoria entre 2000 (depois da exposição no MEIAC) e a presente data.
Quanto ao resto, agrada-me não ver por ti "tratada com qualquer condescendência" quer a colecção, quer o coleccionador quer, finalmente, o director, os artistas e suas obras. Resta-me desejar que venhas a aplicar o mesmo critério de exigência tanto à programação já anunciada, que não referes, como à sua execução.
Obrigado por aceitares este reparo,
joão pinharanda
Posted by: joão pinharanda | 07/20/2007 at 17:26
Obrigado pela correcção (uma desatenção minha) e pela colaboração, portanto. É uma oportunidade para insistir que me interessam os coleccionadores que fazem eles mesmos as suas escolhas - que têm gostos próprios e se relacionam directamente com os artistas e os acompanham (ou abandonam), fazendo colecções individuais e diferentes, melhores ou piores: o futuro o dirá. Tem sido o caso do dr. Cachola, pelo que sei. As grandes colecções privadas fizeram-se e fazem-se assim (Gulbenkian, Brito, Berardo, para ficar por cá). Só essas têm coragem para escolher fora dos equilíbrios burocraticamente circunstanciais; só essas se distinguem.
Depois, no MEIAC e agora no MACE, existe um diálogo/confronto entre coleccionador e comissário/director - interessa-me essa tensão e tentar adivinhar os seus sinais e sintomas.
Espero pela programação futura para a anunciar aqui (já tinha tentado em "FG - Colecções em debate", a 2 de Julho), mas o que me interessa mais num Museu, se o nome importa, é o que deixa de ser efémero: são as escolhas propostas como (possivelmente) duradoiras no balanço necessário entre as galerias e as reservas - por aí se fará, ou não, a construção do presente que importa para o futuro (já não a norma, mas a diferença, ou talvez o paradigma, o modelo a desafiar a seguir).
Há sempre muitas obras que têm vida curta, e é bom que essas escolhas (há diferentes interpretações quanto ao que mais importa) se discutam no espaço público, e que o público as entenda.
Posted by: ap | 07/22/2007 at 22:03