Os papéis de coleccionador e homem de negócios são de uma compatibilidade testada pela história (os Medici, Gulbenkian, os Rockfeller, Jorge de Brito, ou Manuel Vinhas, Augusto Abreu e outros - Berardo é só mais recente).
A acumulação de cargos como funcionário público (director de um museu nacional, no caso de Pedro Lapa, o Museu do Chiado) ou conselheiro cultural (do primeiro ministro, no caso de Alexandre Melo) e como curador de colecções privadas (no caso dos dois, a Ellipse Foundation/Fundação Elipse de João Rendeiro, Banco Privado) levantam pesadas dúvidas quanto à promiscuidade dos interesses e à honorabilidade dos interessados - e do Estado
A falta de credibilidade da área cultural e em particular das artes plásticas tem muito a ver com tais práticas - noutras áreas a relação entre bilheteira e orçamentos de produção impõe algum rigor quantitativo, aqui tudo pode ser arte e tudo se compra e vende a qualquer preço confidencial. É necessário regular também este mercado, demasiado pouco transparente e pouco fiscalizado em que circulam agora valores avultados. Comece-se por cima.
Mas a questão vem de longe, por exemplo de 2003.
"Incompatibilidades"
Expresso / Cartaz de 22 – 11 - 2003
(Coluna de opinião, «Extracatálogo»)
«Como distinguir a exposição de um artista no museu e a intenção de promover investimentos nas suas obras?»
Têm tido bastante projecção as questões relativas à incompatibilidade
da acumulação de certas actividades profissionais, políticas e
empresariais. Deputados e outros detentores de cargos políticos,
advogados, médicos e jornalistas são sujeitos a regimes legalmente
definidos ou ditados pelas respectivas associações. Outros casos são
objecto de polémica, como a acumulação de lugares partidários com o
papel de comentador político, uma aberração do nosso panorama mediático
que falseia o jogo democrático.
As notícias da criação de dois fundos de investimentos em arte, sob a
forma de fundação ou não, com ou sem intuitos mecenáticos, vieram pôr
em foco a acumulação de outras funções que à partida se julgariam
inconciliáveis.
Num desses fundos (a Ellipse Foundation do Banco Privado e de João Rendeiro) surge como «curador» - um dos responsáveis directo pelas aquisições - o director do Museu do Chiado (Pedro Lapa); no outro, integram o respectivo conselho consultivo os directores do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém e do Serviço de Belas Artes da Fundação Gulbenkian (Delfim Sardo e Manuel Costa Cabral - este 2º fundo não terá chegado a actuar).
Estes últimos - o CCB e o Serviço de Belas Artes - não fazem aquisições para colecções próprias e no segundo caso não se trata de uma entidade estatal, embora o lugar que a FG ocupa entre as instituições públicas a distinga de um mero agente privado. Participa também no mesmo conselho o director do Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva (arq. Sommer Ribeiro), instituição com escassa intervenção para além da que é dedicada à obra dos dois artistas.
Poderia julgar-se que se trata apenas da disponibilização de um saber adquirido em favor da dinamização do panorama artístico, que passa, necessariamente, pela comercialização das obras. Está em causa, porém, com graus diferentes de eficácia, uma intervenção decisora com consequências tanto na construção da notoriedade dos artistas como no destino mercantil das suas produções.
Não são separáveis as opções (estéticas?, mercantis?) que levarão o director de um museu a programar a exposição de um determinado artista ou integrá-lo na respectiva colecção e, por outro lado, a patrocinar investimentos nas suas obras. Para cumprir bem a sua dúplice função, ele deverá expor no museu os artistas cujas obras recomenda ao fundo de investimentos, para lhes conferir legitimidade institucional e as promover pela inclusão no espaço museológico. E deverá também expor e adquirir obras de artistas cuja produção seja objecto de opções significativas de investimento, antes de estas terem consequências na respectiva valorização, servindo-se da informação privilegiada a que tem acesso enquanto «agente duplo».
Noutras áreas de investimento financeiro, esse acesso privilegiado («inside trading») é fiscalizado e punido, mas o alibi da cultura recobre alguns mercados de uma aparência de pura virtude. O que daqui resulta quanto à orientação da criação artística e à relação com o público, cada vez mais indiferente ou desconfiado, são outras questões não menos relevantes.
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