"Super Xana"
EXPRESSO/Cartaz de 13/03/93
XANA, "Super Plástica", Gal. Valentim de Carvalho
"Organizar o espaço como uma segunda pele. Bela, claro!" É uma exposição "Super Plástica". O que remete tanto para a cirurgia como para as artes ditas plásticas, mas se esclarece mais prosaicamente na feérica invasão de plásticos pelo espaço da galeria. "Se a exposição ficar muito parecida com um supermercado, será excelente!".
Uma instalação, como devem ser as exposições mais contemporâneas. Uma
instalação conceptual, com título, programa, protocolo e inventário de
objectos, comunicados num disco preto que serve de convite. Como "uma
concepção do mundo" e até com uma chamada de atenção às "desgraças que
vão pela Terra" - "esta exposição não (as) esconde, porque essas estão
sempre a saltar-nos para cima".
E também uma instalação Super Pop, como se verá pela presença repetida
dos objectos de consumo corrente (alguidares, pratos, cestos de roupa,
canecas, contentores, baldes, etc), sempre de plástico, claro, e também
pela apropriação de imagens recortadas de pares do cinema - se não
faltasse a colaboração do fabricante devia haver mesmo uma parede de
embalagens do autêntico Super Pop, recordando outras histórias de com
caixas de Brillo (Warhol).
Mas esta instalação não repete um modo já rotineiro de encenar objectos artísticos, recolhidos tal e qual, ou fabricados como artefactos reciclados. É um lugar de excitação visual, de prazeres e de ideias. É, já se disse, um espaço plásticamente organizado. Onde há muralhas de objectos que dividem as salas, disposições ou empilhamentos de coisas que formam tapetes, volumes e paredes, ou que trepam por elas, e se associam, ou não, a quadros ou objectos tridimensionais. Aqui, o uso dos objectos acumulados sucede-se já às vitrines de Koons e às prateleiras de Steinbach: passou-se do luxo e da elegância simulada a uma nova desordem. O modo de brincar de Xana é sempre tão lúdico como bem informado, mas não se fica pela gestão-digestão das referências (somem-se ainda, de passagem, Tony Cragg e os néo-geo): ele inventa.
Um monte de cestos cor de rosa pode ser uma escultura se uma instituição coleccionadora a reconhecer como tal, como se sabe desde há décadas - Xana não joga nessa tecla gasta, acumula os objectos com uma função "plástica", instaura a dúvida sobre a natureza e o destino dessas coisas banais que instalou na galeria, e diverte-se com tudo isso (com os objectos, as acumulações, o espaço e essa dúvida essencial). Dando-nos a possibilidade de nos divertirmos com ele.
Há ainda, por toda a parte, irregularmente distribuidos, outros objectos que ele fabricou, e onde concentra toda a energia da sua "visão super plástica do mundo": pinturas planas sobre tela engradada rectangularmente, como eram antigamente quase todas, nas quais se organizam cores ritmicamente distribuidas, contrastes de formas repetidas, geométricas ou orgânicas; pinturas também planas e rectangulares onde a inclusão de cavilhas perturba as regras habituais de definição abstracta dos espaços e das ilusões espaciais; pinturas recortadas em formas geométricas, aleatórias ou talvez figurativas, cobertas com motivos gráficos, e que podem ver-se isoladas ou em conjuntos; pinturas recortadas sobre madeira numa banda muito estreita que se organiza como desenho sobre a parede, reciclando a velha categoria do "shapped canvas" (são os trabalhos mais recentes); pinturas sobre discos de madeira, com impressões serigráficas de imagens românticas de cinema, perfuradas pela mesma distribuição de cavilhas mas mostradas horizontalmente sobre alguidares de plástico; pinturas (ou serão esculturas de parede?) de recorte irregular sobre madeira que crescem em volume, revestido também de tintas berrantes; "assemblages" de recortes tridimensionais, etc, etc.
Existe um novo efeito de bazar dentro do supermercado, e são esses objectos criados por Xana, circulando entre o catálogo clássico dos géneros plásticos, que dão o seu essencial sentido à instalação, numa circulação ininterrupta de efeitos visuais e num projecto unificado de criação e organização do caos.
Reveja-se o passado da carreira de Xana, para sublinhar a surpresa radical deste regresso:
As pinturas anteriores, mostradas em 89, procuravam manter nos formatos irregulares e nos volumes tridimensionais a evidência de uma ligação com uma imagem pública antes estabelecida como escultor, mesmo se as suas esculturas sempre tinham trepado pela parede e eram suporte de efeitos e organizações de cores. Em 1990, o "antigo" modo de brincar com as construções e as disciplinas parecia prolongar-se já mais como hesitação, o jogo anárquico e lúdico adivinhava-se tentado pelo "design", estabelecia-se um código onde havia antes acumulação de invenções, como se o "salão" aristocrático da Valentim de Carvalho imprimisse aos objectos uma carga de respeito ou intimidação.
Era um abrandamento de ritmo que parecia fazer descolar Xana de outros nomes do seu antigo grupo Homeostético, como uma paragem depois de um fulgurante começo individual em 1985, ou um tempo de transição para novos saltos (mas são, afinal, datadas desde 1988 as pinturas só agora mostradas). Entretanto, veio a surpresa da intervenção com quatro esculturas colocadas na Alameda da Universidade durante o programa de "arte pública" das Festas da Cidade de 1991, renovada com outra intervenção no ano seguinte, nos corredores do Metro do Saldanha, e outras ainda, conhecidas só de fotografias, em edifícios de Osnabruck, Alemanha, por ocasião de uma representação colectiva portuguesa organizada por Rui Mário Gonçalves.
A questão que então se punha era a da criação de uma muito forte linguagem gráfica de intervenção em grandes espaços, definida como uma fórmula feliz e de possível destino apenas decorativo, e, por outro lado, a incerteza quanto à possibilidade de regressar ao espaço da galeria com objectos que não fossem apenas a sua miniaturização. A prova está feita, numa exposição que é ao mesmo tempo uma síntese das direcções de trabalho antes apresentadas, a descoberta de experiências ocultadas, a invenção de novos objectos e a integração de toda uma obra num espaço global: a criação de um mundo.
É de uma surpresa rara que aqui se trata. Da soma perturbadora do inesperado com uma evidência longamente anunciada. E que tudo se passe como invenção de um espaço de alegria, como um manifesto e uma brincadeira, é ainda mais estimulante.
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