EXPRESSO/Revista de 4 Set. 1993, pp38-39
Antonio Lopez, “Saber pintar”
a propósito de El Sol del Membrillo
ALGUÉM pinta, ou tenta pintar, um quadro. Aliás, não é um quadro que o pintor pinta, o qual corresponderia já a um primeiro reconhecimento de um nível de autonomia modernista (o auto-engendramento de um espaço pictural na superfície bidimensional): o pintor pinta um marmeleiro que plantou no seu jardim — aquele marmeleiro. O que ele procura é captar uma realidade exterior e natural que caracteriza à partida como bela: é a beleza natural que deverá ser transcrita sobre a tela. E ele pratica e pensa a sua pintura com a suposta naturalidade de um acto originário e intemporal, sobre o qual a história (da pintura) não surge a problematizar o que é o mimetismo, a representação, o «medium», etc. Não há problemas de pintura, existe apenas a dificuldade de cumprir um programa.
Por outro lado, a pintura estabelece-se, neste caso concreto, minuciosamente documentado no filme de Victor Erice, sobre a aplicação de um sistema preciso de regras de feitura e de composição que são apenas ideossincráticas: a obrigatória presença física do modelo (sem recurso à fotografia ou ao estudo prévio), a fixação de um ponto preciso de onde olha o pintor (marcado com pregos no solo), um sistema de coordenadas que asseguram a verdade da representação (uma grelha estabelecida com réguas, fio de prumo e marcações sobre o objecto a copiar).
Mas o pintor atribui-se à partida um desafio improvável: captar o efeito da luz solar sobre os frutos maduros, numa situação de rápida rotação do sol do Outono e de crescente instabilidade climática. Não é o momento ou a impressão que interessam ao pintor (a pintura de Antonio López é sempre a de uma ausência do tempo, uma procura da eternidade).
O propósito concreto, que remete para alguns desafios do impressionismo mas é alheio às suas soluções, será contrariado pelo passar dos meses numa sucessão de episódios pungentes (do abrigo de plástico para evitar a chuva até à presença de amigos que seguram os ramos entretanto vergados) e, em especial, pela lendidão do pintor. Ele acabará por abandonar o quadro. Mas para quem saiba que as pinturas de A.L., em geral, demoram anos em execução, há qualquer coisa de pouco credível no desafio encenado para o filme.
Se o pintor não pode ou não sabe pintar o seu marmeleiro não é com a dificuldade da pintura, hoje, que ele se reencontra. Todo o filme remete a pintura para um exercício de habilidade ingénua e a obra pintada para o plano de uma singularidade de atitudes que traduzem apenas a personalidade do pintor (ou a consistência de um personagem de ficção). Quando o que importa, à margem dos dogmatismos e revisionismos com que se pensa a tradição moderna, é a singularidade estética que em cada obra se reconhece, acima das normas e grelhas ideológicas que a cada momento se propõem como lugar de leitura.
ANTONIO López, Tàpies e Barceló são os mais famosos pintores espanhóis, desde a morte de Dali, e nos terrenos da notoriedade entre o «grande público» e do preço das obras é aquele quem ocupa a primeira posição. Raramente mostrada, a sua produção é em geral absorvida por circuitos americanos, na órbita da Marlborough Gallery.
A estreia madrilena do filme deveria ter coincidido com uma retrospectiva no Centro Rainha Sofia, mas o discreto A.L. protagonizou o maior escândalo do ano artístico ao cancelar a exposição como protesto contra a não representação da «escola realista» no novo Museu. Viria a reconsiderar mais tarde e a retrospectiva decorreu entre Maio e Julho.
De facto, ele é o herói espanhol de um suposto continente seguro que subsistiria sob os desvarios da arte moderna: uma tradição realista que seria localmente persistente, como directo prolongamento de Zurbarán, Velázquez, Murillo, Zuluaga, Solana, etc, por vezes reivindicada como genuinamente espanhola. A.L. é um caso exemplar (como o americano Andrew Wyeth) de uma assumida rectaguarda sustentada no virtuosismo de um «métier» e na crença de uma ahistocidade da pintura.
O academismo de Antonio López mantem, no entanto, uma relação complexa com a evolução da pintura. Durante largos anos ele procurava uma estranheza próxima de algum imaginário surrealista (chamou-se-lhe realismo mágico), enquanto a retórica pictural de outros trabalhos permitiu atribuir-lhes uma incorporação discreta de marcas de informalismo, e outras obras ainda, interiores domésticos degradados, casas de banho e frigoríficos, estabeleciam parentescos com algum hiper-realismo. Não existe nessa diversidade de estilos mais do que uma desamparada sabedoria artesanal da pintura. E certamente um amável personagem.
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