O Porto, há dias, parecia ter voltado aos tempos da capital cultural (2001) ou descobrir uma vocação de cidade das artes, ou pelo menos um programa para o verão. Dalí, Gerardo Rueda e François Dufrêne (para escolher o nome mais conhecido do Museu de Serralves) disputam lugares bem visíveis no espaço urbano, em grandes painéis publicitários e nos habituais cartazes de Serralves.
Dali está no Palácio do Freixo, aberto ao público depois de restaurado e antes de se oferecer à hotelaria (pode ser um bom matrimónio, já que há imenso património sub-utilizado ou em ruínas - questão a discutir pela população do Porto - ver p. ex. art&manha , blog que acabei de descobrir).
O que se expõe, por iniciativa de uma Câmara que sabe qual é a cultura que lhe serve, são "285 obras" (originais certificados, garante-se), em geral papéis e pequenas esculturas decorativas de produção muito tardia, que constituem a parte já mais degradada da sua produção comercial (autêntica ou não, não importa nada).
Dalí é um caso extremo de degenerescência e oportunismo que foi ganhando alguma "respeitabilidade" em meios cultivados só porque o mundo artístico foi prescindindo de juízos críticos, em nome de um "vale tudo" em que o único critério é a visibilidade mediática. Os horários (até 4 de Nov.) prolongam-se para as 22h e 24 horas, a entrada é cara (4 €, 2 para cartão CGD) e o público parece ser muito.
Gerardo Rueda, 1926-96, é um discreto artista espanhol (também - e a iniciativa, assumida pela Universidade, é igualmente patrocinado pela CGD, que já não se contém nos espaços dados à Culturgest, sem chegar ainda às alturas da sua prestação em Madrid, onde patrocina a exposição de Van Gogh no Museu Thyssen! - ver aqui ). É apresentado até 15 Set. pelo IVAM de Valência (o IVAM de Consuelo Ciscar, já não de Kosme de Barañano, Vicente Todolí e Tomás Llorens - mas o mesmo IVAM que trouxe pela primeira vez à Europa a grande pintora norte-americana Elisabeth Murray, agora falecida...).
Em Lisboa, aliás, o mesmo IVAM apresenta o escultor valenciano Miquel Navarro, n. 1945, na Cordoaria ( ver - até 30 Set., entrada livre: e esta é uma interessante exposição). A dupla operação simultânea visa marcar posições durante a presidência portuguesa da UE. São questões geoestratégicas (afirmação de cidades e de regiões de Espanha), tal como os patrocínios bancários são questões de marketing e de gestão de imagem do capital financeiro.
Gerardo Rueda, pintor madrileno, foi com Fernando Zóbel y Gustavo Torner um dos fundadores do Museu de arte abstracta espanhola de Cuenca, e um dos pioneiros de um abstraccionismo espanholista que se impôs no final dos anos 50 revelando a modernização cultural da ditadura. A obra é séria e menor, sem rasgos de génio mas irrequieta na pesquisa de caminhos secundários e periféricos, líricos, informais, construtivistas em diferentes momentos de uma obra ora dada a efeitos de matéria e monocromia, ora geometrizante e com soluções em relevo, com passagem pela colagem e experiências de escultura, por assemblage e acumulação ou por geometrias sumárias com vocação pública.
Chega ao Porto numa gorda versão tripla, com pinturas no Museu Soares dos Reis, pequenas e médias esculturas na Reitoria da Universidade e grandes obras de escala exterior nas imediações - uma delas a perturbar a ala de esculturas de Juan Muñoz no Jardim da Cordoaria, que a CMP continua a trazer maltratado. Não me pareceu que desperte entusiasmos, nem tal se justificaria, apesar do digno voluntarismo da obra e do gigantismo da operação, que a seguir parece ir mostrar-se em Nova Iorque. Barbara Rose, a veterana e cansada crítica americana, e Bernardo Pinto de Almeida, infatigável, caucionam a vinda ao Porto. O filho Rueda, proprietário de quase todo o acervo, é o agente da acção.
Dalí é obviamente mentira, Rueda não chega a convencer. Então para que serve a arte, para quem?
Dufrêne, em Serralves até 28 Out., passa metade do tempo a mostrar que (a arte) não serve para nada, que é uma convenção inútil e caduca, mas que vale (ainda, ou cada vez mais...) para encher museus e preencher políticas públicas de cultura - e ele diverte-se (diverte-nos?) nessa parodia com que ganhou a vida. É o lado dadaísta, que pode encontrar alguns outros cúmplices igualmente descrentes nas (ou adversários das) virtudes e qualidades da arte.
Outra metade de Dufrêne (1930-82) viveu de repetir até à exaustão o tipo de paródia em que se especializou - expor restos de cartazes arrancados como se fossem quadros: ele há tanta má pintura que estas coisas também valem. Claro que o lado de crítica dos valores da burguesia se perde com um exercício repetido que se torna um "estilo" - é só mais um estilo reconhecido, mais um ismo (o descolagismo - uma das variantes de um chamado novo "novo realismo" francês de Pierre Restany), mais um valor de mercado, mais um maneirismo. Por vezes nota-se demasiado a necessidade de fazer bem feito, bonitinho, de explorar com bom gosto o programa "letrista". Por mim, visto um, está visto tudo, e não é mais do que uma nota de pé de página nas histórias da arte do séc. XX.
Mas há toda uma história fabricada com artistas que não valem mais do que uma nota, pioneiros que fizeram pela primeira vez uma originalidade qualquer, uma gracinha ou inutilidade qualquer, e a foram repetindo como funcionários. Por isso se fazem exposições imensas, repetitivas, que se percorrem em poucos minutos e em que nos cruzamos com dois ou três casais de visitantes apressados. Serralves tem estas especialidades, que lhe dão projecção no meio (internacional). Esta é a maior e até a primeira retrospectiva de F.D. fora de França, a primeira a juntar a letra dita (sonora) e a letra rasgada (colada), etc.
Dalí é popular, Rueda é chato, Dufrêne é chique. Há arte para vários públicos, e assim é que está bem. Assim é que (todos) começamos a parecer cultos e o Porto alcança o dinamismo das grandes cidades. Ao lado e à margem desta animação pode ser que vão aparecendo algumas obras escolhidas. Para já, tudo isto se equivale - bastante por baixo.
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