EXPRESSO/Cartaz de 05 Junho 1993, Actual, p. 3
o livro Augusto Cabrita — Um Ponto de
Vista,
edição Europália
«O último filme de Augusto Cabrita»
POR coincidência infeliz, a memória da Europália ficará associada à
memória de Augusto Cabrita. Foi a este, com efeito, que Rui Vilar
atribuiu a empresa de fotografar a mais vasta, e também mais bem
sucedida, representação da cultura portuguesa no estrangeiro. Concluida
a reportagem, preparada a edição de um album, viria a falecer já este
ano mas antes de poder ver a conclusão do seu trabalho.
O livro está pronto, e pode dizer-se que é o registo merecido pela
Europália e pelo fotógrafo. Intitula-se Augusto Cabrita — Um Ponto de
Vista e tem ainda, sobre a capa cartonada com um aspecto de Bruges — a
memória de Brel, também — as referências «Europália 91 Portugal» e
«texto de Nuno Júdice».
Augusto Cabrita trouxe para esta reportagem fotográfica a paixão pelo cinema que prevaleceu nas suas últimas décadas de actividade (Belarmino, centenas de trabalhos para a RTP), e fez um documentário sobre a Europália, o filme das suas exposições e de alguns outros acontecimentos maiores que seleccionou da extensa programação: um recital de Carlos Paredes, uma estreia de Manoel de Oliveira, os cavalos de Alter, uma reconstituição histórica, as festas de rua.
Ele próprio esclarece num breve prefácio confessional: «a sós com as minhas velhas e sempre eternas Pentaxes, propus-me fotografar segundo a minha prática cinematográfica» (antes, dissera muitas vezes que «fotografar é uma coisa; filmar, outra»). O resultado é qualquer coisa que é de facto fotografia, por vezes belíssima, mas uma fotografia informada pelo cinema — «Grande plano, plano americano, plano de conjunto. Campo e contracampo», outra vez o texto de Cabrita —, servido por uma paginação (de José Brandão e Nuno Vale Cardoso, Atelier B2) que é também montagem.
Augusto Cabrita não se concentrou nas peças expostas (já estavam recolhidas nos catálogos). Surpreendeu espaços, observou objectos — mas essencialmente deu-nos a ver, pela primeira vez, a escala verdadeira dos objectos nos seus cenários expositivos —, e acompanhou os visitantes nos seus trânsitos, atitudes e curiosidades: são muitas vezes quase personagens de um filme, seguidos em movimentos de câmara ou em sequência de planos. Ao contrário da generalidade das fotografias feitas em museus, à procura da anedota ou do contraste insólito, e à distância também de qualquer intuito de satisfação nacionalista, Cabrita surpreende pessoas e momentos do encontro com as coisas, fotografa a relação entre os objectos e os observadores, a sua atenção ou surpresa, tantas e tantas vezes de catálogos ou guias na mão.
Adivinha-se a emoção real de Augusto Cabrita perante uma representação portuguesa que excedeu em muito o que se pode ver entre nós, revelando tesouros e identidades escondidos. Percebe-se que Cabrita quis usar a fotografia para que outros, aqui, pudessem ver o que ele viu, surpreendendo-se: abdicou de efeitos, de redundâncias, de artifícios, o que não é o mesmo que apagar-se como autor.
Rui Vilar, no prefácio, diz, bem, que «é, pela forma como foi elaborado, um livro de fragmentos, de frases, de imagens soltas, de sombras e de luz». E Augusto Cabrita esclarece ainda mais o seu modo de trabalhar: «Nada de flashes nem de automatismos. Se estivermos de boa saúde (Cabrita tentava esquecer que não estava de boa saúde) devemos respirar ao nosso próprio ritmo; não deixemos que a máquina respire por nós... E sempre a Luz Natural — o mais belo dos projectores!» Mais adiante, depois de invocar Jacques Brel: «Acima de tudo, criar atmosferas e mostrar o interesse e o entusiasmo que a nossa Festa da Cultura promoveu em quase dois milhões de visitantes.»
Uma das mais bem montadas exposições, os «Mecanismos do génio», em Charleroi, está pouco representada, talvez em resultado das próprias limitações técnicas que Cabrita se impôs. No final, uma sequência de retratos oficiais (Cavaco não está favorecido) será o cumprimento de obrigações contratuais da reportagem. Mas o que importa são os retratos de gente e de objectos e, em especial, as fotografias onde se capta o espaço entre eles. Ou então os interiores encenados, vistos através de vidros e espelhos, o jogo das páginas de sequências fotográficas (Colecção Camargo), a montagem gráfica (conceptual ?) dedicada a Carlos Paredes e ao Palais des Beaux-Arts de Victor Horta.
Quando verá o público este album? Dois dias de pesquisas não foram bastantes para o apurar. O Comissariado da Europália acabou com a primeira metade de 1992; o projecto de edição continuou a ser coordenado por Margarida Lages, beneficiando de um patrocínio mecenático da Geril e sob a alçada do Fundo de Fomento Cultural, «herdeiro» daquele comissariado. Não se sabe ainda se, e quando, o livro será posto à venda, nem foi possível apurar em tempo útil se a decisão caberá ao secretário de Estado da Cultura ou ao director do FFC.
A edição, com 160 páginas bem impressas pela Printer Portuguesa, com data de Abril de 1993, não ostenta a chancela de uma entidade responsável (apenas o logotipo da extinta Europália 91 Portugal), mas já tem depósito legal.
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