O que será a "berardização" da cultura"? 2ª aproximação, tentando ir direito ao assunto.
Não sei o que o Óscar Faria quer dizer com a sua frase (Ípsilon/Público, 17 de Agosto, pág. 52)
"Num momento em que se assiste a uma "berardização" da cultura, com todas as consequências que daí advêm - nomeadamente a hipervalorização de um acervo que tem sido constituído em função do mercado, sempre especulativo, e sustentado por questões de oportunidade; por oposição a uma planificação exigível a um museu -, o descontrole parece total. Daqui a dez anos, quando terminar o contrato com o comendador, que tem uma verba pública disponibilizada para aquisições, quais serão as alternativas entretanto criadas pelo Estado?"
mas entende-se que lhe atribui um sentodo negativo.
Ora para mim a "berardização" da cultura tem um conteúdo ou sentido essencialmente positivo, e é mesmo o que de melhor tem ocorrido nesta área, para além da aplicação do chamado PRACE que veio inverter a ambição megalómana da anterior reforma da administração do sector, há dez anos, reduzindo o seu aparato burocrático e os seus custos (pelo menos é o que se espera).
Em termos gerais, a "berardização" da cultura significa a intervenção directa da vontade e dos meios de acção de um particular afortunado (é a iniciativa privada, se se quiser), com a intenção de suprir carências do país e as incapacidades dos poderes públicos, estabelecendo com estes as parcerias necessárias à prossecução daqueles objectivos.
Em termos mais específicos, a "berardização" traduziu-se, após a experiência positiva de uma primeira parceria em Sintra (desde 1997), na criação do primeiro e único museu internacional de arte moderna e contemporânea existente no país (o que Serralves não é, por ser só de arte contemporânea, nem o Chiado nem a Gulbenkian, etc). Com um imediato, bem construído, legítimo e muito compreensível êxito de público, o que também é parte decisiva do que se deve entender positivamente por "berardização".
A inovação que o Museu Berardo representa com o seu programa cronológico e a sua ambição de alargada comunicabilidade cultural é substancial e corresponde ao que se deve chamar uma decisiva alteração de paradigmas - e estão dois paradigmas em causa.
Em primeiro lugar contraria-se uma ideia de corte, ruptura ou diferença de natureza entre a arte a que com pouco rigor se chama contemporânea (desde 1945, desde 1960, desde 1968, desde os anos 80?) e a arte anterior, do séc. XX ou mesmo XIX, convencionalmente dita moderna (ou até também a antiga, se o horizonte histórico for mais englobante ou recuado).Todas as grandes instituições internacionais fundadoras de um relacionamento alargado e sedimentado (ou fundamentado) com a arte do presente são museus de arte moderna e contemporânea, como sucede no Centro Pompidou e na Tate, no MoMA e no Guggenheim em Nova Iorque, na generalidade dos museus alemães, onde, aliás, as colecções começam em muitos casos com os primitivos góticos - o que só tem vantagens para desfazer barreiras e preconceitos. O debate complicar-se-ía, porém, se se pusessem frontalmente sobre a mesa, por exemplo, as teses de um Thomas McEvilley em The Triumph of Anti-Art (2005), mas não é isso que acontece, talvez por falta de objectividade conceptual. Ainda ninguém quis caracterizar Serralves (é só um exemplo) como um "Museu contemporâneo de anti-arte", o que estaria talvez em conformidade com a sua estratégia fundadora.
Essa continuidade histórica, que o Museu do CCB só pode cumprir com limitações, em especial quanto às primeiras décadas do século XX, por carências da sua extensa colecção, é um elemento essencial de "berardização" porque rompe com divisões cronológicas arbitrárias ou com trincheiras estéticas erradas, a que também correspondem preconceitos arreigados.
As ideias simétricas de que a arte contemporânea não se compreende, conforme pensa uma grande parte do público, e de que ela se dirige a um público especializado devido à especificidade da sua evolução histórica e à dificuldade própria de linguagens de dificil aprendizagem, segundo pensam grande parte dos funcionários da arte, são postas frontalmente em cheque também no Museu do CCB, pelo facto simples de ter sido de imediato um êxito de público.
Berardo abriu as portas do Museu de par em par com o seu estilo voluntarista, que tira sempre partido, muito habilmernte, da sua origem pessoal humilde e popular. Era uma ameaça de invasão popular, de promiscuidade com o povo, que desagrada a uma parte significativa do universo intelectual, e foram muitos os conhecidos que (me) iam dizendo estar à espera que o museu deixasse de ser gratuito para fazerem uma primeira visita. Ainda não deixou, felizmente. Do outro lado (nós e povo...) as pessoas perceberam, ou sentiram, que desta vez era com eles (era para eles) e acorreram com uma genuina curiosidade, multiplicando-se em declarações de entusiasmo nas televisões e na rádio com uma desarmante e simpática ingenuidade (pela primeira vez entravam num museu, finalmente também havia arte em Portugal, não era só lá fora, etc). Tudo isso é uma magnífica "berardização": a ruptura com hábitos de fechamento intelectual, de justificação de opções de gosto privado e de casta com alegações de desinteresse público.
Claro que tudo isto podia ser só um disparate ou uma diversão populista, mas já havia a experiência de dez anos em Sintra, diversas exposições em digressão pelo país, e um ou outro ensaio de apresentação da colecção no CCB (aliás, sempre em condições de selecção e montagem pouco felizes, até para não contrariar as convenções aceites).
De facto, o Museu do CCB tem um director responsável pela sua programação - o interesse das suas opções e critérios (ou mesmo dos seus compromissos, certamente indispensáveis) são aspectos inseparáveis da tal "berardização".
Em vez de chamar pelo lobo (um dia a colecção vai-se embora, hipervalorizada; daqui a dez anos o Estado não tem alternativas...), em vez de criar a ilusão de uma divisão do mundo da arte entre os vícios do mercado e a candura dos funcionários (sabemos que partilham a mesma mercadoria e que são constantes as trocas de lugares), valeria a pena, se os jornais ainda concedem espaço a abordagens mais objectivas, pôr de lado os fantasmas imaginários e fazer a análise dos programas expositivos e do primeiro roteiro do museu que nos foram propostos não pelo temível comendador mas pelo muito concreto director artístico da instituição, Jean-François Chougnet (em colaboração com Eric Corne, pintor e fundador do centro de arte contemporânea Le Plateau, de Paris, a quem também se prestou pouca ou nenhuma atenção).
Acabo de ler com muito agrado e concordância os seus últimos 3 posts.
Sobre a "berardização" está à vista: não fica bem, não é chic, associar Berardo aos altares da arte contemporânea em que se veneram, entre si, alguns dos protagonistas das nossas castas superiores, evidentemente bem-nascidos. Talvez "berardização" queira significar uma espécie de "rasquização", mal caricaturando as políticas culturais de Isabel Pires de Lima, que como sabemos andam aos altos e baixos, mas que neste campo foram até corajosas, acolhendo com dignidade a colecção de Berardo, que já existia. O que não tem nenhum sentido é esta coisa de se pretender criar novos museus de colecções inexistentes, quando as colecções que já existem nos museus nacionais não são devidamente valorizadas.
Apenas uma dúvida, ou discordância, com o Alexandre, no que diz respeito ao previsto pólo do Hermitage em Lisboa: se estes pólos são acolhidos em Londres, em Amesterdão, em Ferrara, porque não também em Lisboa, capital de um país onde o património museológico é manifestamente de menor relevância? Se a avaliação que o Alexandre faz é negativa por considerar necessário reduzir as carências existentes em vários museus nacionais, então não o compreendo. Carências de meios nos Museus Nacionais são uma coisa (resolúvel!), carências de projectos ou museus relevantes são outra. O Hermitage Lisboa, não será um projecto relevante e oportuno?
Posted by: Roteia | 08/23/2007 at 06:12
Não posso deixar de concordar com o Óscar Faria sobre o sentido negativo dado à berardização da cultura. Gostaría de ver a opinião de críticos sobre o espólio do Museu Berardo apontado o seu real valor artístico (ao invés do seu valor monetário). Além do que, à revelia da opinião do Berardo, estamos longe de uma nova Gulbenkian. Não atribuo qualquer filantropia aos actos de Berardo. Por vezes os meios também interessam.
Posted by: Nuno Matos | 08/23/2007 at 08:58
Não posso deixar de concordar de que, de facto, a "berardização" veio contribuir para uma certa "democratização" da arte em Portugal. E, nesse ponto, acho que estamos todos de parabéns. Só lamento que não o mesmo não aconteça com outras colecções (Ellipse, Manuel de Brito, etc).
Na verdade, aquilo a que chamamos "berardização", não é mais do que a massiva intervenção da comunicação social. Aconteceu também no CCB, com a exposição do Frida Kahlo, e na Gulbenkian, com a exposição do Amadeo de Souza Cardoso (http://arteinsite.blogspot.com).
Posted by: Simenta | 08/27/2007 at 14:36