O que será a "berardização" da cultura"? Foi o Óscar Faria, regressado do seu "grand tour", que usou ou propôs o conceito (de facto, não sei se a proposta é inédita,mas partamos do princípio que sim). Foi no Público de dia 17 de Agosto, na pág. 52 do Ípsilon - aliás, as questões levantadas pelo tema de capa (a cena alternativa do Porto) são também relevantes, mas a escrita está preguiçosa.
A ideia da "berardização" tem algum sentido ou é uma facilidade que cobre enganos de apreciação ou erros de alcance teórico, cultural ou político? Pode valer a pena examinar isso (sem querer ter ou parecer ter qualquer intenção polémica, ou sem esperar resposta do próprio Óscar, que terá mais que fazer).
Diz ele, depois de se ter zangado bastante no seu pequeno tour pelo "Allgarve":
"Num momento em que se assiste a uma "berardização" da cultura, com todas as consequências que daí advêm - nomeadamente a hipervalorização de um acervo que tem sido constituído em função do mercado, sempre especulativo, e sustentado por questões de oportunidade; por oposição a uma planificação exigível a um museu -, o descontrole parece total. Daqui a dez anos, quando terminar o contrato com o comendador, que tem uma verba pública disponibilizada para aquisições, quais serão as alternativas entretanto criadas pelo Estado?"
A "berardização" não é definida e há apenas referência às suas alegadas consequências, primeiro envolvidas globalmente num genérico e impreciso "todas as consequências", e depois particularizadas ("nomeadamente") na questão de uma possível hipervalorização do acervo (devido à longa exposição no museu do CCB, certamente).
Tentando analisar a passagem transcrita em busca do conteúdo conceptual da berardização, anota-se a crítica feita ao acervo - "que tem sido constituído em função do mercado, sempre especulativo, e sustentado por questões de oportunidade".
Ora o mercado não é sempre "especulativo".
Primeiro, o mercado é, em si mesmo, o espaço, a instância, o plano em que acontece a parte essencial da oferta e da circulação de objectos artísticos. É o terreno de acção das galerias comerciais e das feiras (estas com uma natureza em grande parte complementar e concorrencial com as bienais, como o OF terá notado no seu "grand tour" à passagem por Basileia). E deixemos agora o 2º mercado, com os seus agentes e os leilões. Desde os impressionistas que o essencial da produção artística (a inovação e o mainstream, primeiro - só o mainstream, depois?; julgo que ambos, sempre) passa pelo mercado, em condições específicas mas genericamente idênticas à da comercialização de todos os produtos na economia capitalista (esta palavra presta-se a depreciativamente entendida - talvez se possa dizer na economia do trabalho e do capital). Há também as obras produzidas para consumo próprio (o que é característico da arte marginal ou outsider), as que se oferecem a parentes e amigos, as que se trocam por serviços e as que não se vendem (porque ninguém as quer, porque não chegam a ter visibilidade ou espaço no mercado - algumas destas podem ter uma longa e próspera vida póstuma e fazer a alegria de museus como Serralves, veja-se o caso Mangelos, entre outros...)
Existe igualmente o terreno da encomenda pública, mas esse é também um mercado, parcialmente descentado do mercado galerístico, talvez. E existe o terreno da circulação institucional em que participam museus, centros de arte ou galerias públicas, fundações, bienais e outros eventos temporários ou espaços fixos, o que envolve a encomenda de produções efémeras ou de objectos duradouros, e aquisições em condições especialmente vantajosas (para ambas ou para uma das partes...). Esse é igualmente um mercado, com subsecções no seu interior (Estado central e regional, cidades, fundações, bancos, particulares, etc), também parcialmente descentrado dos anteriores, mas muito sensível, como se sabe, aos interesses económicos de galerias e leiloeiras, de comissários, directores e outros intermediários, burocratas e mediadores - não há nenhuma "pureza" (greenberguiana ou não) neste mercado ou nesta circulação institucional... Aí se compra e aí se vende, aí se trocam prestígios, interesses, influências, favores
Para não alongar muito, dispensa-se o exame dos casos históricos de parcial estatização da economia artística e também das mitologias dos circuitos "alternativos", embora estes possam ser algo mais do que um canal de acesso para o mercado galerístico-e-institucional.
O mercado é mercantil por definição, os vários mercados referidos são sensíveis a questões de valorização de preços e prestígios, mas isso não quer dizer que seja(m) sempre especulativo(s). O lucro nem sempre é o seu objectivo, menos ainda o seu objectivo directo e principal.
Uma parte substancial da Colecção Berardo, nos seus primeiros anos, foi adquirida nas condições muito favoráveis da crise do mercado da primeira metade dos anos 90, o que não permite atribuir-lhe propósito especulativo e nos deve levar a elogiar o sentido de oportunidade - no caso, o de Francisco Capelo. Como se sabe, o mercado recompôs-se em grande medida, e alguns índices ultrapassaram sem riscos os indicadores do anterior "boom". O que não significou que o coleccionador voltasse costas ao mercado, devendo até registar-se a ocorrência recente de aquisições de grande vulto, como a escultura Reclining Figure; Arched Leg de Henry Moore (1969/70, julgo que editada em vida do artista) - lembre-se como a Gulbenkian deixou escapar a que teve muitos anos no jardim - ou a escultura L'Arbre Biplan, de 1968, de Jean Dubuffet. Espero que tenham resultado de boas "oportunidades", porque boas esculturas são-no sem margem para dúvidas.
O pormenor da "verba pública disponibilizada para aquisições" presta-se a erradas interpretações, e/ou resulta de erradas informações, já que a contribuição estatal é acompanhada de outra igual por parte do comendador e destina-se a aquisições a realizar por uma Fundação que tem um director artístico autónomo e uma administração que representa as duas partes. No caso de um futuro impasse negocial as verbas concedidas pelo Estado terão de ser repostas por Berardo se pretender tomar posse dessas obras. Há formulações que perturbam qualquer possibilidade de seguro entendimento da realidade. E sabendo-se que as verbas públicas disponibilizadas para a Fundação de Serralves são superiores às atribuídas à Fundação de Arte Moderna e Contemporânea - Colecção Berardo, as compras de Serralves serão a resposta à pergunta sobre a alternativa criada pelo Estado.
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