ARQUIVO
EXPRESSO/Actual de 20-09-2003
"Dois destinos"
Noites de Paris/Barcelona (Brassai, Joan Colom) e Moçambique (Ricardo Rangel)
Dois livros, catálogos de exposições que provavelmente não veremos, estabelecem pontes que seria oportuno seguir para abrir as fronteiras do nosso autismo. Vêm de Espanha e Moçambique (via Suíça).
O primeiro tem o longo título Brassaï París. Colom Barcelona. Resonancias (30€) e associa dois projectos fotográficos vividos em tempos e condições muito distintas, mas identicamente pioneiros, pelo famoso fotógrafo e escritor de origem húngara e pelo catalão Joan Colom, distinguido em 2002 com o Prémio Nacional de Fotografia de Espanha.
É uma realização da Fundação Foto Colectania, instituição particular de Barcelona criada em 2002 para promover o coleccionismo e divulgar a fotografia espanhola e portuguesa (www.colectania.es). Já conta com obras de numerosos fotógrafos portugueses na sua colecção e expôs uma selecção do acervo do Centro Português de Fotografia (ex-Colecção Nacional de Fotografia). Para além de contar com uma representação permanente em Lisboa, todos os catálogos, com distribuição em Portugal, incluem a respectiva tradução, a par do castelhano, catalão e inglês.
A exposição, patente até dia 30, surpreende os primeiros anos de actividade de Brassaï (Gyula Halász, 1899-1984), que chegara a Paris em 1924 como pintor e trabalhava como jornalista, passando tarde à fotografia, aos 30 anos, iniciado por Kertesz, outro húngaro, para ilustrar as suas próprias reportagens. Próximo dos surrealistas sem o pretender ser, publicou no fim de 1932 o livro Paris de Nuit e colaborou na revista «Minotaure» e em todos os grandes magazines da década.
«Flâneur» e fotógrafo caçador, observador de namorados e prostitutas, é a população da noite que o atrai, num trabalho de noctívago que percorre os cais desertos em busca da «beauté du sinistre» e os bares e bailes mal-afamados de Paris. Viriam depois os «graffitti» e os retratos de intelectuais e artistas, mas a mostra concentra-se nos anos 30-35, expondo as provas de trabalho para a edição de Quiet Days in Clichy, de Henry Miller, 1956, com as marcas dos reenquadramentos, e outras provas de época de várias colecções (uma delas portuguesa).
Dos «bas-fonds» de Paris passa-se ao Barrio Chino de Barcelona, El Raval, percorrido nos anos 50-60 por Joan Colom, nascido em 1921, amador que participou na renovação da fotografia documental espanhola, nascida nas associações fotográficas durante o primeiro degelo político do franquismo e protagonizada por Català-Roca, Oriol Maspons, Ramón Masats e Xavier Miserachs.
Entre a «Gente de la Calle», são as prostitutas que Colom mais fotografa — «também eu faço a rua», dizia do seu trabalho, igualmente marginal e arriscado, disparando sem olhar pelo visor e enquadrando os vultos no laboratório. Em 1964, fez escândalo com o livro Izas, Rabizas y Colipterras, com textos de Camilo José Cela, e retirou-se depois da queixa apresentada por uma das mulheres retratadas. Seria interessante associar-lhes as deambulações lisboetas e populares de Victor Palla (e Costa Martins), pela mesma época, ou pouco antes, com uma idêntica irreverência pioneira, mas faltarão ou estão inacessíveis as provas de época necessárias a um tal projecto.
Ricardo Rangel, From the series "Our Nightly Bread" , Lourenço Marques 1960's to 1970's
Entretanto, é o moçambicano Ricardo Rangel que pode entrar em «ressonância» com Brassaï e Colom, graças a outra série fotográfica que teve por tema a prostituição, realizada já nos anos 60-70, na Rua Araújo da zona do porto de Lourenço Marques, ocupada por soldados e marinheiros. «Pão Nosso de Cada Noite» é o mais famoso trabalho de uma longa carreira de foto-repórter, iniciada na imprensa do período colonial e prosseguida depois no quadro da independência e como formador de uma nova geração de fotógrafos.
Presente em todas as antologias da fotografia africana que não temos visto (as do Guggenheim em 1996, da Revue Noire em 98, do Museu de Charleroi em 99, etc.), Rangel lançou as bases de um meio fotográfico muito activo, com estruturas estáveis, como a Associação Moçambicana de Fotografia e o Centro de Documentação e Formação Fotográfica. Em Maputo já se começou a investigar a história da imagem no país (António Sopa no Arquivo Histórico de Moçambique) e inauguraram-se em 2002 os 1ºs Encontros Internacionais (Photo Festa), além da presença regular nos Encontros da Fotografia Africana de Bamako, no Mali. Na ausência quase total de atenção portuguesa, é a cooperação da Itália, França, Suíça, Suécia, etc., que tem mantido os apoios indispensáveis.
É de Basileia que chega o catálogo Iluminando Vidas. Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana, publicado por Christoph Merian Verlag, com direcção de Bruno Z’Graggen (Zurique) e Grant Lee Neuenburg (Maputo), destinado a acompanhar uma exposição itinerante que chegou a estar anunciada para Portugal (Braga e Portimão), cancelada a pretexto de finanças. Em Outubro, a mostra estará nos 5ºs Encontros de Bamako e continuará em digressão.
Além dos veteranos Ricardo Rangel (n. 1924) e Kok Nam (1939), são representados com mais de 100 imagens outros 13 fotógrafos (Rui Assubuji, Joel Chiziane, José Cabral, Naíta Ussene, Sérgio Santimano e outros), que têm acompanhado, com a determinação de um fotojornalismo convicto, a guerra civil, os desastres naturais e a luta de um povo pela sobrevivência. A par das fotografias, textos de vários autores (incluindo Allan Porter, o velho editor da revista «Camera»), biografias, depoimentos e mais documentação completam uma edição de grande qualidade (28€ — www.iluminandovidas.org). Seria o melhor ponto de partida para redescobrir o caminho para Maputo.
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