EXPRESSO/Revista de 27-Fev.-93 (Madrid, Arco), pp 58-61
in MADRID “Depois do quadrado branco”
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Brice Marden, Reina Sofia
Susana Solano,Palácio Valazquez
Miró, Reina Sofia
James Turrell, La Caixa
Rauschenberg fot., Galeria Cobo e Alexander
ENTRE Malevitch e as obras de Brice Marden e Susana Solano, dois artistas com que Donald Kuspit poderia exemplificar a sua «ideia do artista suficientemente bom», em oposição à tipologia dos artistas de vanguarda («Creacion», nº 5, Madrid 1992), existe uma proximidade de motivações e interesses que é sempre possível classificar como do domínio da metafísica, em contraposição às leituras reducionistas dos formalismos. Associados directamente, nos respectivos inícios de carreira, à lógica evolutiva e aos elementos materiais do minimalismo, de que Malevitch é ainda a remota origem, em ambos os artistas a linguagem das formas, que é desenvolvida sobre o terreno da não representação e da procura de uma eficácia visual alheia a uma normativa validade puramente intelectual, interpreta-se como permanência do enigma ou da inquietação existencial, da ambiguidade dos sentidos ou do sublime.
Brice Marden, nascido em Bronxville, Nova Iorque, em 1938, aluno de
Albers, alcançou a notoriedade em inícios dos anos 70 como pintor da
segunda geração minimalista, a de Agnes Martin, Robert Ryman, Robert
Mangold, Richard Tuttle e Larry Bell. Realizava painéis monócromos cuja
feitura em encáustica (cera com pigmentos) lhes assegura uma grande
subtileza de textura e colorido; passou depois a construções
fragmentadas e arquitecturais, até que, em meados de 80, rompeu com o
rigor geométrico e se voltou para a redescoberta de um traço manual que
vinha retomar práticas da grande abstracção gestual americana, ao mesmo
tempo que manifestava um novo interesse pela construção da luz, em
efeitos de sobreposição e transparência, tensão superficial e
atmosfera.
No Rainha Sofia, exibem-se agora (até 15 de Março) uma sequência de
sete óleos de grande dimensão e dezenas de desenhos que resultam
directamente do interesse pela poesia e a caligrafia chinesa, e pela
meditação zen; a exposição foi mostrada em Nova Iorque, Minneapolis e
Houston e, depois de Madrid, seguirá para o Kunstmuseum de Bonn.
«Could Mountain» (Fria Montanha), do nome da obra do poeta e monge Han
Shan, que viveu no século VIII, pode ser vista dentro daquele regresso
a Pollock e, em especial, como o retomar da investigação de Mark Tobey
sobre a relação entre o gesto livre e a escrita, entre caligrafia e
conteúdo poético, o movimento físico do pincel e a meditação.
Trabalhados em sequências desenvolvidas da direita para a esquerda e de
cima para baixo, como a escrita chinesa, os desenhos não deixam de
produzir uma impressão de exercício repetido e um défice de
comunicação, mas a pintura liberta-se da disciplina predeterminada para
construir uma malha luminosa e instável, energéticamente controlada e
visualmente justa.
SUSANA Solano é uma escultora catalã (Barcelona, 1946), que surgiu
apenas em 1979 para seguir ao longo da última década uma trajectória
fulgurante; a sua primeira grande retrospectiva, que o Rainha Sofia
apresentou no Palácio Velázquez, viajará, com menos obras, para Londres
(Whitechapel Art Gallery, de 12 de Março a 2 de Maio) e depois para
Mälmo e Grenoble.
São mais de 50 esculturas, desde as iniciais experiências com lona
cosida ou madeira, até às construções monumentais em ferro e às mais
recentes instalações onde surgem outros materiais como o vidro e o aço
inoxidável, o recurso a equipamentos técnicos e à incorporação de
fontes de luz. Mostradas num percurso não cronológico, em três grandes
conjuntos intitulados «Flúidos», «O Sujeito» (ou «The human being») e
"Suspensões", são discretamente acompanhadas no catálogo por
fotografias feitas pela própria S. Solano, que confirmam a importância
do ambiente e da paisagem na sua obra, e também por algumas imagens da
infância que permitem sinalizar o discurso autobiográfico como uma das
suas mais subterrâneas direcções de trabalho.
Na aparência fria e mecânica da sua obra, que parece prolongar o
minimalismo de Robert Morris, sublinha-se a reactualização de questões
da presença espacial das personagens de Giacometti e da energia pura
dos volumes simbólicos de Brancusi, em peças onde a dimensão vivencial,
as referências arquitectónicas, ou as conotações ecológicas e culturais
se manifestam numa ambiguidade essencial de sugestões sem definição
possível e sem finalidade concreta. Mesas, camas, armários ou jaulas,
espaços de oferta e encerramento, objectos suspensos, lugares habitados
pelo corpo, fontes, rios e colinas, como polos da paisagem, são uma
meditação sobre o entorno existencial do homem, sobre os espaços e
condições dos lugares onde vive, sobre a impregnação do sentido das
formas por secretas circunstâncias biográficas.
Nenhuma peça se presta a uma identificação literal em relação a um
objecto concreto, um problema formal ou uma situação psicológica, e os
títulos são apenas referências irónicas ou metafóricas (muitas vezes a
indicação do lugar de produção, sob a forma de um jogo verbal) —
convocando sempre a possibilidade de leituras múltiplas por parte dos
diferentes espectadores. Mas a interpretação, no sentido de acesso a
uma estrutura discursiva definitiva, não é, também neste caso, a
dimensão essencial da relação com a obra. «A arte não existiria sem o
mistério do inexplicável», escreve a autora no catálogo ("Del arte o de
la vida"). Ou: «A interpretação é o problema do espectador, não do
artista» (entrevista, «Art Press» nº 140, 1989)
A ABRIR o ano do centenário do nascimento de Miró, o Rainha Sofia
dedica-lhe uma magnífica antologia centrada na série «Constelações»,
realizada em 1940-41, em plena Segunda Guerra, quando o pintor, fugido
ao regime franquista, se refugiou numa aldeia da Normandia. Intitulada
«Campo de estrelas», a exposição desinteressa-se dos habituais
inventários iconográficos para aprofundar apenas a organização
constelada como estrutura recorrente na obra do pintor, ou seja, a
«suspensão dos motivos sobre um fundo vazio e sem pontos de referência»
(catálogo).
Para a comissária Margit Rowell, trata-se também de mostrar como a
descoberta dessa organização de grande liberdade plástica corresponde a
um período de máximo interesse de Miró pela poesia, em contacto com os
seus amigos de Paris (Leiris, Masson, Desnos, Tzara), nos inícios dos
anos 20. É a compreensão da imediatidade do processo poético e o
respectivo processo de acolhimento das imagens insólitas sugeridas por
sons ou por palavras isoladas que lhe permite, em 1923-24, abandonar o
estilo realista e o uso da perpectiva em favor de uma organização
poética da sua pintura, fundada numa dispersão irracional dos motivos,
imagens oníricas ou objectos reais, utilizando o desenho ou as cores
puras sobre um fundo liso, quase monócromo e sem pontos fixos de
referência espacial.
A referida série de 1940-41 corresponde a um retomar desse
automatismo controlado, condensando nas constelações de estrelas e de
pequenos sinais humanos distribuidos no mesmo espaço cósmico a
alternativa imaginária a um mundo em ruinas . Mais tarde, na última
maturidade do pintor e no final do itinerário da mostra madrilena, uma
outra versão depurada da mesma problemática surge na síntese prodigiosa
dos quase-monócromos monumentais dos anos 60 (séries «Azul» e «Pintura
mural», de 61 e 62), realizados no seu novo atelier de Palma de Maiorca
e numa escala que Miró «aprendera» durante uma nova estadia em Nova
Iorque. Aí, a extrema economia do gesto esconde uma longa preparação
intelectual («Sabem como os arqueiros japoneses se preparam para as
competições?», escrevia Miró), e o quase anonimato dos raros sinais que
interrompem a parede de cor estabelece-se como conquista final de uma
poética do vazio que é também a da plenitude do sentido.
Sem ser uma mega-retrospectiva, a exposição conta com uma selecção de
obras de grande importância e em muitos casos pouco vistas, vindas de
todo o mundo (até 22 de Março); a iniciativa central do centenário
será uma grande retrospectiva global na Fundação Juan Miró de
Barcelona, entre 20 de Abril e 30 de Agosto.
JAMES Turrell, outro americano (Los Angeles, 1943), mostrado na
Fundação «La Caixa», é autor de instalações ambientais e de projectos
aparentados com a Land Art — por exemplo, de «jardins de estrelas» (The
Irish ski garden, 1990). Sem formação de pintor, Turrell é um Quaker da
era espacial, um místico com formação tecnológica de ponta, que entende
a luz como «revelação» e persegue qualquer coisa de semelhante ao que
pode resultar do contacto directo com os imensos quase-monócromos de
Miró, onde os fundos de cor saturada, como espaços celestes, absorvem o
espectador por entre as breves constelações de signos.
As suas obras são cabines construídas para ensaios perceptivos,
habitáculos ou salas sem objectos onde se manifesta, por vezes em
condições que exigem várias horas de habituação à obscuridade, a
realidade física da luz e da cor, como «medium» e como experiência da
visão, simultaneamente interior e exterior («Dark spaces»). Noutros
casos o espectador é colocado em confronto directo com o espaço livre
do céu, observando, em condições óptimas de isolamento e concentração,
a variação da luz do crepúsculo ou o silêncio da noite. De facto,
trata-se de um dos casos mais radicais de de desmaterialização do
suporte da obra de arte, uma vez que a percepção é o próprio «medium»
do artista.
O projecto mais visionário de Turrell é uma gigantesca construção que
há anos está a ser escavada numa cratera de um vulcão extinto do
deserto do Arizona (Roden Crater), por entre marcas de culturas indias
recentes: um lugar privilegiado para a observação de eclipses,
constelações e outros fenómenos celestes, onde o espectador poderá
associar a concentração sobre a sua experiência íntima e psicológica
com a sensação radical da integração na natureza e no espaço cósmico,
no sentido de uma visão totalizante ou alucinatória do Universo.
ROBERT Rauschenberg, com as suas fotografias e «Photems» (montagens
fotográficas sobre painéis de aglomerado e alumínio, de 1980-81) —
mostradas na Galeria Cobo e Alexander, até 24 de Abril —, é o antídoto
necessário contra o excesso de metafísica e subjectivismo romântico,
graças a uma obra que é sempre realizada «num espaço menos autodefinido
como arte» (Horácio Fernandez, catálogo).
Uma primeira série, editada em 1980 mas realizada 30 anos antes, é
testemunho de uma inicial hesitação entre a carreira de fotógrafo e a
de pintor, e em especial da vontade de reinscrever as imagens do real
na superfície do quadro. Uma segunda série de fotografias («In+Out City
Limits»), de 1979 a 1981, desenvolve-se como um inventário documental
da cidade, próximo do olhar de Robert Frank: Rauschenberg colecciona
fragmentos, recolhe imagens com um olhar neutro, não interessado no
excepcional ou no simbólico, mas na indiferençiação e na banalidade da
experiência urbana americana; as suas imagens são despidas de
conotações emocionais e não procuram definir um lugar preciso.
Mas as fotografias são também materiais destinados a integrarem as
«combine paintings» e, tal como os objectos que recolhe como elementos
de trabalho, servem-lhe para limitar a projecção de intenções ou
sentimentos no gesto de pintor («Não quero que a minha personalidade
esteja presente na obra»). Nos «Photems» elas associam-nas sobre
painéis recortados em formatos irregulares, geralmente verticais,
ditados por uma composição não narrativa e onde as simetrias ou
oposições de formas não se manifestam como procurada desocultação de
sentidos ou sistema hierarquizado. Se a referência ao totem é
explicitamente convocada, opondo a função primitiva à cidade moderna, a
cultura urbana de que eles são a memória não se chega a constituir como
uma unificada imagem simbólica. Eles são, de facto, testemunho de um
universo caótico, onde a tecnologia se cruza com a ruína numa
permanente labirinto de experiências onde tudo está desorganizada e
simultaneamente presente.
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