Política cultural, crónica
EXPRESSO/Cartaz, Actual, pág. 3, 2 Out. 1993
“A rentrée” (SEC, Capital Cultural)
NÃO SÃO as inaugurações nem as estreias (sejam elas a do Auditório do
CCB ou do Jurassic Park) que marcam a «rentrée». O protagonista é o
secretário de Estado da Cultura.
Para o lembrar, com direito a capa, tome-se um jornal complacente.
Utilize-se a mágica atribuição dos dizeres a «fontes altamente
colocadas no Palácio da Ajuda». Ilustre-se com a fotografia do
propriamente dito secretário acompanhado pelo seu intelectual
predilecto em aprazível fim de refeição (não há vinhos, só a «maldita
cocaína»). Está montado o cenário para a reedição da história do gato
escondido com rabo de fora e para a impunidade do disse/não disse. O
título promete: «Santana ataca de novo».
A seguir, não fica quase pedra sobre pedra, nem responsável à frente da
sua repartição: vai tudo raso. Os serviços, depois da magna
reestruturação de há alguns meses, levarão uma nova volta, e agora é
que vai ser. Diz a fonte, altamente: «Vai tudo andar numa roda vida».
Havia nos últimos meses uma estranha paz no Alto da Ajuda. O São Carlos festejava-se, excedendo os custos das récitas mas poupando nos contratos dos músicos; o D. Maria continuava fechado — tudo normal. A actividade das instituições primava pela discrição, mas o silêncio justificava-se com os preparativos da Capital Cultural. Resolver os atrasos de Lisboa'94 impunha tréguas e eficácia. Diversas nomeações pareciam já traduzir, se não a vontade de consensos, pelo menos a entrada na idade adulta. Santana Lopes até falava sobre livros e incentivos à leitura, gozando as delícias dos palcos comunitários.
De repente, voltou o velho estilo: «prometem-se 'muitas e boas surpresas'» — o Palácio dixit. Desenterra-se um velho projecto de Instituto das Artes Cénicas para arrumar o D. Maria, terminado que está o prazo da «homenagem» prestada a D. Agustina, e reedita-se a fórmula associativa (mais uma fundação?) para o Bailado Nacional. Ameaçam-se de vassourada directores, mesmo gerais, e delegados regionais, ainda frescos. Serralves, o alvo de estimação, ficará de pernas para o ar, sem museu mas com auditório, mais a Orquestra do Porto à força (e certamente também com as dívidas da ex-Régie, que estão por pagar).
Não foi ele que disse, foi a fonte, mas já está assim reeditada a política da terra queimada e dos tiros para o ar, disparados em todas as direcções para espantar as hostes e evitar a discussão séria de alguns problemas reais. Quem for poupado, no rol das substituições postas a correr, ficará mais fiel e agradecido. E quando as extinções e reestruturações forem decididas, se forem, muitos ficarão reconhecidos porque, afinal, as coisas não eram tão negras como as pintavam. Entretanto, como os orçamentos dos serviços já se esgotaram e bateu no fundo o Fundo dito do Fomento, a núvem irá ajudando a conter acertos de contas em fins de ano sempre difíceis.
Tudo isto poderá ser apenas um sinal de regresso ao primado da política em tempos de agitação eleitoral, ou um esforço para, à pequena escala das questões da cultura, mostrar que se aprendem as lições dadas na Madeira. Para o fim do ano há expectativas de remodelação e um lugar de ministro não se ganha sem se sair a combater em bicos dos pés. O tempo é de manobras. Ou serão só tropelias?
Interrogadas outras fontes altamente colocadas, a pretexto de tais guerras, apenas se fica a saber que nada se sabe fora do Gabinete. E o Gabinete está ainda a matutar nas decisões. Porque as reformas, nestes domínios em que os interlocutores naturais não contam, não são estudadas, são decididas — é a regra do depois se verá, que faz sempre parte dos estatutos das fundações descobertas como pátrio milagre cultural.
Mas as mesmas fontes adiantam que alguns sectores estão já a correr o risco de parar se os titulares ameaçados se considerarem limitados no seu pequenino poder de dar despacho, ou, simplesmente, se guardarem na manga da sua sobrevivência o capital negocial que se reservaram. Nas vésperas de Lisboa '94 muitos projectos estão em jogo e os prazos para as decisões já passaram. Com a demissão de Pedro Pinto da administração da «capital», e a demora na sua substituição, é até a forçada aliança SEC-CML que pode ser posta em causa.
Venha de lá esse ataque!
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