ARQUIVO
EXPRESSO/Revista, 08 Maio 1993, p. 45
“A temporada de 94” (a capital cultural)
AO DAR INÍCIO à preparação da capital cultural, um dos principais
responsáveis por Lisboa 94 dizia, «off the record», que tudo estava
«criminosamente atrasado».
Marcelo Rebelo de Sousa fora nomeado comissário, à revelia da Câmara,
em Fevereiro de 1991 e demitira-se em Junho. Passadas as eleições e
estabelecido um já improvável acordo, Vítor Constâncio era indigitado
em Dezembro do mesmo ano. Foi preciso aguardar a oficialização da
sociedade de capitais públicos formada pela SEC e a CML (21 de Julho de
1992), dar posse à comissão (5 de Agosto), procurar uma sede (umas
salas conquistadas no Palácio Foz), esperar pelas primeiras verbas e
ainda pelo papel timbrado que permitisse formalizar os contactos
iniciais. Assumidos o desafio e a falta de tempo — «será o que puder
ser», dizia o mesmo responsável —, estruturou-se em pouco mais de meia
dúzia de meses uma programação que, nas suas linhas gerais, vai ser
oficialmente anunciada na próxima terça-feira.
1994 será uma espécie de soma da Europália, alargada a algumas grandes
representações estrangeiras, com as Festas da Lisboa, prolongadas por
doze meses.
É possível argumentar que as celebrações previstas (as exposições, os concertos de todo o género, as óperas, a animação urbana) não passam de um longo e caro fogo de vista que apenas virá recobrir, em proveito de uma restrita sociedade com direito a convites, a debilidade das estruturas e dos consumos culturais portugueses. A SEC e a CML ter-se-iam rendido a uma aliança espúria para salvar a face, desviando cerca de oito milhões de contos para o orçamento de um festival que só servirá para cumprir um vago compromisso comunitário.
Mas talvez esta capital da cultura não seja tanto um megafestival como a «temporada normal» que Lisboa não tem tido, e esse tipo de críticas — as mais fáceis — venham a errar o alvo.
NOUTRAS capitais, sobrepôs-se à agenda das temporadas regulares um programa comemorativo mais ou menos luxuoso. Foi assim em Berlim, Paris e Madrid, com diminuta repercussão interna e externa. Mas em cidades de menor centralismo cultural, como Glasgow ou Antuérpia, foi possível imprimir à capitalidade um objectivo definido: em 1990, a cidade escocesa desenvolveu a mais vasta experiência até agora ensaiada de articulação entre os investimentos na cultura e uma estratégia de desenvolvimento urbano; em 1993, o comissariado belga volta deliberadamente as costas aos processos de massificação cultural e desenvolve um programa em torno da inovação artística e da reflexão sobre a arte.
Em Lisboa, o projecto da capital cultural não segue nenhum dos modelos anteriores. É um programa de emergência. E, de certo modo, é um arrumar da «casa».
Deverá notar-se que o conselho de administração a que Constâncio preside não é uma equipa de programadores culturais, mas uma assembleia de responsáveis por departamentos oficiais e de representantes de entidades públicas (e políticas).
Pela SEC estão presentes: Simoneta Luz Afonso, que dirige o Instituto Português de Museus e coordena a área das exposições, tal como já fizera na Europália; Maria Manuel Pinto Barbosa, que se demitiu do lugar de directora-geral de Acção Cultural no tempo de Maria José Nogueira Pinto, dirige o teatro e a dança; Ana Costa Almeida, subdirectora da Cinemateca, está encarregada do cinema e do vídeo; Pedro Pinto, eurodeputado da confiança política de Santana Lopes, tem a seu cargo a promoção. Quanto aos elementos da Câmara, representada nas suas múltiplas sensibilidades: José Carlos Megre, ex-chefe de gabinete de Jorge Sampaio, responde pela música erudita; Ruben de Carvalho, que tem sido um dos responsáveis pelas Festas de Lisboa (e do «Avante!»), programa a música popular e o plano das edições; Elísio Sumavielle, do Património Cultural da CML e conhecido pela sua ligação a João Soares, tem o pelouro de arquitectura e urbanismo; por último, Adelaide Rocha, funcionária da SEC, cuida das finanças.
Em vez de uma previsível parlamentarização, a proximidade em relação ao poder em que se encontram todos os elementos da sociedade Lisboa 94 acabou por permitir, com a urgência de inventar um programa a curtíssimo prazo, uma articulação eficaz com as estruturas oficiais da cultura, tanto mais — paradoxalmente — que elas se encontravam, quase todas, em desagregação. A obrigatoriedade do festival terá exigido, primeiro, uma trégua política e, depois, uma espécie de transferência de competências da SEC e da CML para a comissão, a qual, em torno de uma programação concreta, procurou demonstrar uma eficácia que em ambas as sedes não se verifica.
A DEFINIÇÃO de objectivos e a preparação do programa da capital cultural fez-se com total ausência de debate aberto com os munícipes ou com os criadores culturais — e diz-se que o convite à apresentação de projectos de iniciativa particular teve um nível de resposta lamentavelmente baixo. Mas também é verdade que à sociedade Lisboa 94 faltavam os interlocutores a nível das grandes instituições públicas voltadas para a criação ou a divulgação artística, com a excepção óbvia da área dos museus, em reestruturação desde o início de 92, mas incluindo uma Câmara que foi até agora incapaz de definir uma estratégia própria para a cultura.
No S. Carlos existia uma administração liquidatária e apenas um programador limitado à temporada do bicentenário (93); o D. Maria está em situação comatosa, anunciado-se uma reforma em futuro incerto; no CCB, as perspectivas de financiamento mantêm-se indefinidas e alguns dos primeiros responsáveis foram-se demitindo ou não chegaram a iniciar actividades. A SEC encontrava-se praticamente esvaziada de tudo o que diz respeito a linhas de programação própria (da edição musical às orquestras ou à política de exposições), talvez à espera do inesquecível Congresso da Imaginação. Por parte da Câmara, assistiu-se sempre a um divórcio total entre a opção pelos investimentos estruturais a que se dedicou o pelouro da Cultura (Museus e Arquivos, Videoteca, etc.) e a animação cultural ensaiada por outras vias — um impasse que traduz a diferença política de João Soares no seio da maioria.
Se essa quase ausência de interlocutores e de programas institucionais pré-definidos reforçou a operacionalidade do conselho de administração, ela motivou também a adopção de uma estratégia sempre que possível voltada tanto para 1994 como para o futuro imediato: Lisboa 94 é a solução-milagre para o S. Carlos, o D. Maria e o CCB, em termos de preenchimento do calendário de 94, mas algumas sementes deverão ficar entretanto lançadas quanto a modelos de gestão e programação.
É claro que havia a Gulbenkian como o primeiro pilar com que contou Lisboa 94, no âmbito da música (reforço do ciclo de Grandes Orquestras) e da dança (os cinco espectáculos de Pina Bausch nos Encontros Acarte), mas o acaso também permitiu dispor da nova sede da Caixa Geral de Depósitos, que inaugurará os seus espaços culturais a 11 de Novembro.
A tempo de se tornar um pólo de animação do Chiado, reabrirá o antigo Museu de Arte Contemporânea, remodelado segundo um notável projecto do francês Wilmotte, mas chegou a prever-se que estaria concluído em 1991 — tal como sucede com o CCB, que abriria em 92, a «sorte» de alguns atrasos reverte a favor da imagem global de 94. Outros espaços surgirão reactivados nos Museus de Arte Antiga, de Etnologia e do Azulejo, e como total novidade haverá um Museu da Música, a recolher a colecção de instrumentos antigos nos subterrâneos do Metropolitano no Alto dos Moinhos. E também o Museu Vieira da Silva e Arpad Szenes, cuja construção decorre por iniciativa da Fundação homónima. E a Casa de Fernando Pessoa, o novo Coliseu e o mais que se verá.
A PRETEXTO de Lisboa 94 será possível, para além de apresentar alguns acontecimentos de excepção, pôr em funcionamento estruturas paralizadas (os museus) ou indefinidas (o CCB), relançar hábitos interrompidos (a ópera no Coliseu, por exemplo), inaugurar algumas recuperações patrimoniais e projectos há muito anunciados, em suma, normalizar parcialmente uma situação que passara de pobre a desvastada. Os investimentos estruturais e de programação convergem para estruturas centrais debilitadas, mas é certamente necessário que assim seja para que outras dinâmicas periféricas e independentes se possam, em seguida, vir a sedimentar.
No início das suas funções, Vítor Constâncio afastou logo «algumas ilusões» e, em especial, «a de que este poderia ser um momento maior da criação cultural e de encontro mágico com grandes massas de público conhecedor e interessado». Haverá mais teatro, mais óperas, mais exposições, mas, para além da escala alargada da programação, muitas das iniciativas não se esgotarão na sua celebração efémera: para além dos investimentos patrimoniais que sobreviverão a 94, ficarão, por exemplo, as óperas que entram no reportório do S. Carlos, por resultarem de co-produções, os 20 CD de música portuguesa a editar, o restauro de vários órgãos em igrejas da cidade. Noutros domínios, como o do plano de edições ou o das acções em torno do fado (investigação, exposição, publicação de estudos), a estratégia dos programadores procurou assegurar que os festejos deixem marcas.
Ao propor bruscamente uma oferta artística muito superior, a temporada «normal» de 94 será sempre um ano de sobreprogramação, mesmo que se faça um esforço decidido de divulgação e de informação (mais do que de promoção entendida como publicidade) e se adopte uma política de preços adequada a um público desmotivado e mergulhado numa conjuntura de agravamento da recessão. Mas a criação de necessidades culturais e a revitalização da criação artística passam pela intensificação e subida de qualidade da oferta. É preciso é que os investimentos da capital cultural tenham continuidade em 95.
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