Por ocasião do centenário, assinalado em Espanha em 2004 com alguma justificada prudência, a exposição comemorativa foi uma inteligente abordagem do artista e do fenómeno mediático.
O Dalí nomeado Marquês de Pubol já não era um grande artista, mesmo que o seu museu continue a ser (talvez) o mais visitado de Espanha. (Também lá fui para confirmar que é uma feira grotesca)
EXPRESSO de 31-07-04
Centenário
"Dalí, pintor e impostor"
No ano do centenário do nascimento de Salvador Dalí, a sua pintura vai ser mostrada em Veneza, enquanto em Espanha a principal exposição comemorativa aborda a relação com a cultura de massas
A grande exposição oficial do centenário do nascimento de Salvador Dalí
não se realiza em Espanha mas em Veneza. É no Palácio Grassi,
sustentado pela Fundação Fiat, que se vai reexaminar a obra do pintor
catalão, numa mostra dirigida pela historiadora inglesa Dawn Ades,
especialista em Dalí e no surrealismo; será inaugurada a 11 de Setembro
e viajará no início de 2005 para o Museu de Arte Moderna de Filadélfia
(digressão curta para um artista que em 1979 levou 800 mil visitantes
ao Centro Pompidou). Então se poderá voltar a discutir a tese largamente consensual de que a
obra relevante de Dalí enquanto pintor se restringe a pouco mais de uma
década, entre a aproximação aos surrealistas que se desenha em 1927,
sob a explícita influência de Max Ernst, Miró e Tanguy, e o ano de
1939.
O método da «paranóia-crítica», cujo delírio associativo permitiria
«materializar com a mais imperialista raiva de precisão as imagens da
irracionalidade concreta», foi saudado como uma contribuição original
ao surrealismo. A partir dessa data, ou já desde 1934, quando a ambígua
atracção por Hitler e a inclinação para uma espécie de neoclassicismo
onírico começava a degradar as relações com Breton, a figura do
«showman» interessado principalmente na construção do seu mito pessoal
vai passar a sobrepor-se à do pintor, na crescente espectacularização
de um autoproclamado génio que obteve grande êxito mediático (capa da
«Time» em 1936) mas se foi tornando cada vez mais patética à medida que
o bigode ia crescendo.
A obra a seguir produzida - Dalí morreu em 1989, nomeado Marquês de Pubol, e nos últimos anos assinou muitas folhas em branco, envolvendo-se em histórias de falsos que nunca terão fim - repetia o seu formulário em jogos de figuras duplas e anamorfoses de um meticuloso virtuosismo técnico, popularizando o surrealismo no sentido corrente de excentricidade ou loucura. Ao regresso à costa catalã de Port Lligat, em 1948, com inesperadas declarações de apoio a Franco e à Igreja, que nunca lhe foram perdoadas, seguiu-se uma deriva assumidamente antimoderna, mesmo quando atribuía aos seus quadros as alegadas referências científicas de um estilo místico-nuclear, com que procurava ainda aliar a vontade vanguardista de surpreender ao academismo próprio de um «Old Master», na burlesca pretensão de ser o Rafael do século XX.
Para além do discutível gosto surrealista pelas excomunhões, o anagrama Avida Dollars inventado por Breton em 1942 revelou-se inapelavelmente certeiro.
Entretanto, a mais importante das exposições espanholas do ano do centenário, apresentada primeiro em Barcelona e agora em Madrid, nas novas instalações ampliadas do Museu Rainha Sofia (até 30 de Agosto), pretendeu precisamente enfrentar o «fenómeno Dalí» e algumas das suas dimensões mais controversas através da análise do que foram, desde o início, as relações do pintor com a chamada cultura de massas. Organizada por Félix Fanés, que foi director científico da Fundação Gala-Salvador Dalí e está agora a reunir toda a sua abundante produção escrita numa cuidada edição das Obras Completas, é uma muito grande exposição que consegue aliar a investigação erudita em vários domínios a uma bem conseguida espectacularidade de montagem. Com mais de 400 peças - das pinturas e objectos às gravatas desenhadas para Elsa Schiaparelli e aos «spots» publicitários que interpretou, passando pelas coisas insólitas que coleccionou -, terá contado com um orçamento de seis milhões de euros. Em Outubro, em versão mais compacta, transita para o Museu Dalí de St. Petersburg, na Florida, e em Fevereiro de 2005 vai para o Museu Boijmans de Roterdão.
O objectivo de «Dalí. Cultura de Massas» é mostrar como o artista sempre circulou entre o universo restrito da «alta cultura» e a cultura popular ou «baixa», produzida industrialmente e ao alcance de toda a gente, interessando-se desde cedo pelo cinema e a fotografia, a publicidade, a moda e outros aspectos da vida moderna. De facto, a vontade de ultrapassar as fronteiras da arte e de acolher o quotidiano e o industrial é comum aos movimentos artísticos do início do séc. XX, e vem mesmo de trás, não assumindo no Dalí anterior à sua primeira viagem os Estados Unidos (em 1934) qualquer particular relevância ou sinal distintivo, para além do gosto pelo «kitsch».
A originalidade de Dalí, no seu percurso posterior, é a transformação da figura do próprio artista em obra de arte, a elevação do personagem público à condição de uma suprema criação mediática, para além da importância que possam ter os tradicionais objectos de arte (mas também neste campo foi em certa medida antecedido por Marcel Duchamp). É esse entendimento que a exposição consagra no seu epílogo, ocupado com dois «screen tests» realizados em 1964 e 65 por Andy Warhol. São dois pequenos filmes estáticos e sem som gravados na Factory, que apenas se distinguem dos seus muitos outros retratos de personalidades por Dalí aparecer projectado de cabeça para baixo. Dalí teria sido, sublinha Félix Fanés, um precursor da Pop e do «efeito Warhol», ao entender antes dos outros que os novos tempos convertiam toda a realidade (e a arte também) num gigantesco mercado comercial, anulando o idealismo e o sentido transformador das anteriores atitudes artísticas.
Um dos capítulos importantes da mostra diz respeito ao interesse de Dalí pelo cinema, passando da colaboração vanguardista com Buñuel (Un Chien Andalou, de 1929, e L’Age d’Or, 1930) à atracção por Hollywood, marcada pelo trabalho com Hitchcock em Spellbound, de 1945, e por um projecto fracassado com os Estúdios Disney, no ano seguinte. Tal como Breton, Dalí admirava o humor absurdo dos Irmãos Marx e interessou-se especialmente por Harpo, a quem ofereceu uma harpa. Shirley Temple, protagonista de um quadro, e Mae West, cujo rosto transformou num quarto habitável, numa colagem que deu depois origem a uma das salas do Teatro-Museu de Figueres, enquanto os lábios lhe inspiraram a criação de um sofá, foram outras figuras que o seduziram. Após vários projectos falhados, o convite para trabalhar em Hollywood surgiu com Spellbound, para o qual concebeu os cenários da sequência do sonho. Foi um dos primeiros filmes americanos a tomar a psicanálise por tema - a leitura de Freud, nas primeiras traduções espanholas dos anos 20, tinha sido decisiva na formação de Dalí, e em 1938, na única vez que se encontraram, em Londres, tentou provar-lhe que era o seu mais fiel discípulo em pintura.
A colaboração com Disney para a realização de um desenho animado intitulado Destino interrompeu-se após a filmagem de 15 ou 18 segundos, mas conservaram-se óleos, aguarelas e desenhos que se expõem em Madrid. O projecto foi retomado 57 anos depois e tornou-se um filme de seis minutos, estreado em 2003.
A relação de Dalí com a fotografia, menos marcada pela diferença entre dois períodos cronológicos distintos, é outra das áreas investigadas na mostra e no catálogo. No início dos anos 30, o pintor colaborou com Man Ray e Brassaï na realização de fotografias que ilustram os seus artigos na revista «Minotaure», de que se expõem as provas «vintage» originais, de muito pequeno formato, disponibilizando-se lentes para uma visão ampliada. Mais tarde é Philippe Hausman, um judeu letão exilado na América, fotógrafo de celebridades com mais de uma centena de capas para a «Life», que regista os «tableaux vivants» imaginados pelo pintor: Dalí Atomicus e Nu com Pães, de 1948, com os objectos e as figuras a flutuar no ar, e Dalí e a Caveira (1951), onde esta é construída por sete modelos nus, exploram com sucesso as possibilidades de desrealização da fotografia. Mas mais importante seria sempre o uso da imagem fotográfica como veículo da sua transformação em ícone, desde que Man Ray o retratou com a omnipresente Gala em 1934.
Dois outros grandes fotógrafos norte-americanos, Georg Platt Lynes e Horst Paul Horst, colaboraram com Dalí na criação de uma casa surrealista na zona de diversão da Exposição Universal de Nova Iorque em 1939, episódio pouco conhecido que é tratado noutro núcleo. Na linha das instalações apresentadas nas exposições surrealistas internacionais (em especial na de Paris, no ano anterior), Dalí constrói todo um pavilhão de feira popular povoado por atraentes sereias, monstros marinhos e objectos heteróclitos, que foi descrito como «a reconstrução de um subconsciente muito freudiano através do que na Broadway se designa como um ‘girlshow’». Ao espírito racionalista e aerodinâmico que moldava a Exposição de 1939, Dalí contrapunha as formas moles dos seus quadros e uma «declaração de independência da imaginação» para «resistir à horrorosa civilização mecânica».
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