"Uma exposição “magnífica”, diz o vereador da cultura da Câmara do Porto, Gonçalo Gonçalves. Esta mostra, que inclui algumas das obras mais emblemáticas do artista, vai estar no Porto até ao dia 4 de Novembro. A exposição, que foi montada em parceria com a Fundação Metropolitana de Milão (FMM), proprietária das peças, é inédita em Portugal e, por isso mesmo, a organização espera que seja visitada por pessoas vindas de todo o país. Gonçalo Gonçalves acredita que se a exposição, que ele considera “magnífica”, for “bem divulgada” ela “poderá ser visitada por todos os portugueses”."
Isto é publicidade enganosa, além de ser ignorância e estupidez. É uma notícia da Rádio Renascença...
Ainda a propósito das grandes exposições de verão do Porto, vale a pena ver que o acréscimo da oferta é paralelo a uma redução substancial da reflexão (da informação qualificada e da crítica) sobre as obras e os artistas. A lógica é a do consumo ou do lazer, entre outros consumos e lazeres disponíveis, não a de qualquer diferença ou distância que se possa reconhecer como mais gratificante ou mais elevada - seria esse o lugar da cultura ou da arte.
Basta ver os jornais que existem (mais a oferta de tv) e o que se foi passando em termos de informação. Há mais oferta cultural, que já não se reduz só a uma elite mais interessada ou cultivada, enquanto o resto da população vive para o trabalho, o futebol e a igreja, mas há menos debate sobre essa programação de cultura.
Lembremo-nos que os três diários do Porto tinham páginas ou suplementos culturais semanais, melhores ou piores ao longo do tempo. A oferta cresceu mas as páginas de cultura desapareceram. Alguma coisa aí se aprendia e se discutia - durante o "fascismo" e até anos recentes.
Há muito mais arte com Serralves, mas, paradoxalmente, há muito menos crítica de arte (ou nenhuma) nos jornais do Porto. O que havia foi secando, primeiro reduzindo espaços e depois desaparecendo, apesar de, face aos números fornecidos por Serralves, haver mais público interessado. Um diário como o Jornal de Notícias chegou a ter pelo menos quatro colaboradores regulares nesta área, incluindo jornalistas da casa (e lembre-se aqui a Marta Seixas que assinava Fernando Falcão). Valeria a pena que Serralves, entre tanta sessão, pusesse o tema em debate - o que importa aumentar a oferta se a qualidade da recepção diminui?
O que os jornais publicam é quase só a transcrição dos press-releases, seja Dalí ou Dufrêne. É tudo igualmente recomendável, indiferentemente. O jornalismo cultural tornou-se publicitário. E é penoso ver um largo público, às vezes com responsabilidades e com hábitos de cultura, alinhar no interesse por um artista decrépito e oportunista, cuja produção corresponde a um dos casos mais problemáticos de degradação do mercado de arte - daí a insistência das "obras originais certificadas".
Vale a pena recordar o que era Dalí no espaço alargado de uma cultura não era apenas consumo (e não podia ser considerado só um círculo elitista).
Serve uma página de um livro de divulgação que foi muito influente, da grande figura da arte inglesa que era Herbert Read, A Concise Hiistory of modern painting, 1959, que teve uma tradução francesa que foi muito popular na Livre de poche, Histoire de la peinture moderne. Há traduções brasileiras.
Herbert Read cita André Breton, que em 1942 fulminou Dalí com a invenção do justíssimo anagrama Avida Dollars. Refere a "actividade paranoica-crítica" que foi uma contribuição ao surrealismo e continua:
"Apesar de uma inegável habilidade publicitária, a produção de Dalí, servida por uma técnica ultra-retrógrada (regresso a Meissonier) e desacreditada por uma indiferença cínica a respeito dos meios para se impor, dá há muito tempo sinais de pânico e só foi salvando momentaneamente a fachada ao organizar ela própria a sua vulgarização. Hoje, mergulha no Academismo - um Academismo que, sob a sua exclusiva autoridade, se declara Classicismo - e, aliás, desde 1936 que já não interessa em nada ao Surrealismo."
Sir Herbert Read (1893–1968, um respeitável anarquista em estilo muito british) continua, lembrando o itinerário político de Dalí, que se declarou monárquico e católico ao regressar à Espanha de Franco:
"Depos que estas frase foram escritas (em 1942), Salvador Dalí caiu num nível ainda mais baixo, limitando-se a uma exploração cínica de uma religiosidade sentimental fundada no gosto do sensacional (a sua Última Ceia emprestada à National Gallery of Art de Washington é um cenário de teatro para uso da superstição). O comportamento teatral, que sempre foi o seu, levou-o a pôr-se ao serviço das forças reaccionárias espanholas cujo triunfo foi a mais grave afronta jamais feita ao humanismo, que foi a preocupação primordial do movimento surrealista apesar das suas extravagâncias.
É preciso reconhecer, no entanto, que o nome de Dalí, em grande parte devido ao êxito do seu exibicionismo, tornou-se, no espírito do grande público, sinónimo de Surrealismo, e a sua "actividade paranóica-críitica" foi suficientemente astuciosa e vistosa para explicar essa confusão". (pp 182-183, LP 1965)
Seria interessante observar como é que Dalí, cuja obra posterior aos anos 40 não tinha qualquer credibilidade, foi sendo recuperado por alguns meios culturais, num caminho de crescente falta de memória e de sentido crítico. Uma das pistas é observá-lo como precursor de outros casos de artistas que se tornaram vedetas mundanas mais ou meno exóticas, fazendo de si próprios o centro espectacular das atenções, reivindicando mais importância para a fama social alcançada do que para a obra produzida. Andy Warhol foi um continuador, e hoje há muitos além de Jeff Koons.
Entretanto, deve dizer-se que o guia de Herbert Read tinha várias opções que se revelaram depois caducas, em especial a crença "modernista" na vitória ineluctável da "arte abstracta". Era então polémico mas credível excluir a pintura dita realista, apesar de não se negar o "valor profundo" de obras de pintores como Hopper e Balthus, e também a "escola mexicana" ficava omitida. O próprio autor reconhecia essas "faltas" no prefácio.
Por outro lado, este livro é fundamental para compreender o fim de um "paradigma humanista" que perdura (com vitalidade crítica e criativa) até ao fim dos anos 50, tempo do pós-guerra, da reconstrução europeia e da afirmação da divisão própria da Guerra Fria, para ser a seguir substituído por novas convicções, ou melhor, pela ausência delas, por uma espécie de cepticismo generalizado, associável ao culto dos novos consumos e ao fim das grandes narrativas modernas. A Pop é a sua expressão mais visível. Esse é o grande momento (ou período, nada se passa de um dia para o outro) de mudança de paradigma, não o "circa 68" esquerdista que Serralves nos tenta vender.
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