EXPRESSO/Revista de 27-Fev.-93 (Madrid, Arco), pp 58-61
MADRID “Depois do quadrado branco”
2
+ Malevitch, Fundação Juan March
Brice Marden, Reina Sofia
Susana Solano,Palácio Valazquez
Miró, Reina Sofia
James Turrell, La Caixa
Rauschenberg fot., Galeria Cobo e Alexander
COM A DESAGREGAÇÃO do Estado soviético, os museus russos entraram numa crise de consequências imprevisíveis: carecem de meios financeiros para se manterem e sofrem fortíssimas pressões para a devolução de obras a herdeiros de coleccionadores expropriados ou familiares de artistas que foram vítimas de apreensões e alegadas doações forçadas. Até o grande núcleo de trabalhos de Malevitch que desde 1958 se encontra exposto no Stedelijk Museum de Amsterdão está a ser cobiçado, uma vez que nunca foram esclarecidas as condições em que o artista o deixou ficar em Berlim, em 1927, quando foi chamado a Moscovo por altura das primeiras denúncias da abstracção como «a arte da era do imperialismo».
Para angariar os meios indispensáveis à sua manutenção, os museus da ex-URSS alugam as suas obras-primas em outros países. Essa é a origem da actual exposição de Malevitch, que em Paris se pôde ver numa galeria privada e que seguirá de Madrid (Fundação Juan March, até 4 de Abril) para Barcelona e Valência. É uma pequena mostra antológica de 42 telas da colecção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, onde se apresenta uma sequência abreviada dos momentos essenciais da criação de Malevitch, mas em que o sector mais extenso (26 números) é integrado por obras posteriores à invenção do suprematismo, pinturas ditas realistas e quase todas elas datadas pelo próprio pintor de anos muito anteriores à sua produção efectiva.
As presentes condições da Russia não são propícias a que os textos traduzidos no catálogo incluam novos dados relevantes para o esclarecimento do «segundo ciclo camponês» de Malevitch, depois da sua grande retrospectiva itinerante de 1988-91 ter vindo confirmar o carácter sistemático daquelas antedatações (ver EXPRESSO de 29/3/91 — Jorge Calado, «As exposições da glasnost»). No entanto, a concentração dessas obras finais surge nesta antologia com toda a força de um dos maiores enigmas da história da arte.
ATÉ 1915, Malevitch (1878-1935) percorreu um itinerário de sucessivas reorientações estilísticas: passou de um inicial período impressionista a uma breve fase de experiências simbolistas, associando-se depois a uma forma própria de neo-primitismo russo, próxima da pintura «fauve» francesa e do expressionismo de Die Brucke. Seguiu-se a passagem a uma geometrização das formas, baseada no estudo de Cézanne, com uma metalização das cores tomada do futurismo italiano, onde a temática camponesa tomou a aparência robotizada de um «cilindrismo» aparentado com Léger, e logo depois um breve momento cubo-futurista, que evoluiu para o que Malevitch chamou «alogismo», no qual o cubismo sintético se afasta da vontade de representação e acolhe manifestações de absurdo que prenunciam Dadá.
O quadrado negro sobre fundo branco é, no final de 1915, o momento de um salto qualitativo radicalmente original que coloca Malevitch entre os grandes inventores, ao mesmo tempo que proclama um dos supostos fins definitivos da pintura. Com o suprematismo, a pintura deixava a representação dos objectos para se transfigurar num «novo realismo pictural», distinto da abstracção geométrica ou construtiva: o quadrado negro é «a supremacia da sensação pura», o «zero das formas», «o nada libertado», «não o simulacro da realidade, mas o deserto da sensação do não-objecto», símbolo da realidade pura do mundo sem objectos, campo dinâmico carregado de energia, puro signo plástico que é também símbolo religioso e símbolo da morte, tal como da morte da pintura. A experiência pictural tornava-se então para Malevitch inseparável de uma interrogação místico-visionária, o que não impediu que fosse mais tarde reinterpretada, abandonando-se a dimensão espiritual, como pesquisa apenas formalista.
Malevitch dedica-se depois crescentemente à teoria («pelo pincel não é possível atingir o que se pode obter com a caneta», escreve ele em 1920) e ao ensino, assume responsabilidades institucionais no novo Estado russo, interessa-se pelo design e a arquitectura. Mas, por volta de 1928, depois do regresso de Berlim, onde deixara, à cautela, parte substancial da sua obra anterior, recomeça a pintar e retoma todos os seus anteriores processos de criação, a partir do impressionismo, embora sem nunca renegar o suprematismo.
SOBRE ESSA produção final, onde se estabelece uma segunda temática camponesa, tem prevalecido a suspeita de uma involução penosa da carreira do pintor, determinada por um contexto político que impunha o retorno ao realismo. Ao mesmo tempo, aplicou-se-lhe um código simplista de leitura que procura interpretar os quadros como expressão literal da repressão que então se abatia sobre o antigo campesinato em processo de colectivização forçada, representado sempre em figuras sem rosto e corpos tubulares de posições hieráticas destacadas de fundos límpidos.
Há, no entanto, inúmeras razões que tornam improvável ser a repressão sobre os artistas a explicação decisiva dessa pintura, tanto mais que só em 1935 ela se torna esmagadora com a imposição do realismo socialista. De facto, Malevitch pôde prosseguir, ainda em 1932, as suas pesquisas de arquitectura suprematista no laboratório experimental do Museu do Estado Russo; a exposição que reuniu no mesmo local a «retrospectiva de 15 anos de arte soviética», em 1932-33, mostrou as suas obras mais radicais ao lado da produção antedatada; por último, as fotografias do seu funeral e do túmulo, um monumento suprematista erguido em Moscovo, comprovam a continuada visibilidade pública da sua obra mais vanguardista.
Aliás, grande parte da própria obra suprematista e vários dos repetidos quadrados negros que se conhecem estão também antedatados de 1913 e 1915, mas tiveram de facto execução em 1923, por motivo da Bienal de Veneza do ano seguinte, e também ao longo dos anos 30; por outro lado, a condenação do suprematismo não chegou, em primeiro lugar, de uma qualquer repressão oficial, mas da oposição entre as próprias posições vanguardistas, e é Rodchenko que logo em 1919 decreta a morte do suprematismo como «eterno repouso do último ismo», em nome de um construtivismo utópico e utilitarista.
Parece necessário deixar de considerar a pintura que Malevitch realizou entre 1928 e 1932 como um retrocesso ou uma involução — mesmo que se trate de um enorme desafio à lógica dominante da vanguarda —, e tanto mais que ela corresponde, rigorosamente, à aplicação do sistema suprematista à figuração, como os próprios títulos muitas vezes indicam: Suprematismo dentro do contorno de 'Desportistas' (1915/1928-32 — ver pág. 3 R), Suprematismo feminino (1915/c. 1928).
De facto, se os quadros em torno do quadrado preto (da cruz e do círculo, ou do posterior quadrado branco sobre branco) são um lugar terminal da pintura, Malevitch só podia ou cumprir a auto-abolição do acto pictórico, ou repetir um formulário voluntariamente limitado ou, sem renegar a sua obra, reinterpretar todo o seu próprio itinerário anterior — comentando-o com um rigor didáctico, por exemplo ao anotar, no verso de um quadro de final dos anos 20 existente da Galeria Tretiakov, de Moscovo: «As Duas Irmãs são pintadas no momento do Cubismo e Cezanismo. Sob a sensação violenta da pintura do Impressionismo (no momento do trabalho sobre o Cubismo) e para me libertar do Impressionismo, fixei esta tela. 1910. K. Malevitch. Tela pintada em 4 horas» (in Malevitch, de J.-C. Marcadé, Casterman, 1990). E, numa última alternativa que não significa a entrada num suposto período «pós-suprematista», podia retomar a figuração do visível para experimentar as regras suprematistas que definira sobre o mundo dos objectos, a partir de um novo entendimento da natureza da representação e do signo plástico na arte tradicional dos ícones.
Mesmo que tudo se complique mais ainda com a existência de duplas datações (1910 e 1918, em algumas correcções sobrepostas), ou com a realização de algumas obras terminais a que chamou «supra-naturalistas» — em que se inclui o seu perturbador auto-retrato renascentista de 1933, aliás assinado com o «emblema suprematista» —, ter-se-á tratado, para Malevitch, sempre com um máximo rigor, de estabelecer uma ordem lógica e não cronológica da sua obra. E se o quadrado negro é um lugar de chegada inultrapassável, a manipulação das datas não é afinal mais do que a confirmação última dessa aposta extrema.
Comments