EXPRESSO/Revista de 3 Jul. 1993, p.55R
IBA / “Trabalhar no Parque” / Dusseldorf
(Exposição Internacional de Arquitectura e
Construção — IBA, Internationalen Bauausstelluung)
Parque do Emscher, 1990-2000, antiga zona industrial do Ruhr
A TRADIÇÃO alemã das Exposições Internacionais de Arquitectura e Construção — IBA (Internationalen Bauausstelluung) — tem vindo desde o início do século a constituir uma excepcional oportunidade prática de articular a afirmação de novos enunciados programáticos sobre a arquitectura, o planeamento das cidades e a inovação técnica com a resolução das questões concretas da habitação, sob a forma de exposições de arquitectura construída. A experiência das Exposições Universais e o seu impacto na modernização das cidades, desde a de Londres em 1851 no Crystal Palace, deu origem, na Alemanha, a iniciativas circunscritas ao âmbito da «construção construída» que se sucederam no período entre as duas guerras.
Depois da exposição de 1927 em Stuttgart, considerada exemplar pela perspectiva social do seu programa, o processo foi reatado no final da guerra em Hannover, em 1951, e em 1957 em Berlim; mais recentemente, Berlim voltou a ser, em 1987, o palco de uma nova IBA, para a qual foi definida uma área de intervenção com sete quilómetros de extensão no centro da cidade, para um exercício prático de renovação urbana e ensaio de novas metodologias construtivas. Pela primeira vez na história das exposições, um dos temas então propostos foi a reabilitação de construções antigas e a integração de edifícios modernos em conjuntos pré-existentes. Álvaro Siza participou no programa com um projecto para um bloco de habitação e residência de 3ª idade, em Schlesisches Tor, Kreuzberg, que ficou conhecido como «Bonjour Tristesse».
As IBA são, de facto, verdadeiras exposições que não se encerram nas paredes de um museu ou de uma galeria. Ocupam pedaços de cidade, sinalizando-a com um certo número de edificações assinadas. Visitam-se no terreno e habitam-se. Articulam a realização de concursos internacionais de arquitectura e planeamento com a pesquisa de novos modelos teóricos e com a resolução de necessidades concretas em equipamentos e habitações.
A mais recente IBA, o Parque do Emscher, está em curso desde 1990 no coração da antiga zona industrial do Ruhr, com um horizonte temporal de dez anos, e vai ser o tema de uma conferência-workshop no dia 9 (às 16h) na Faculdade de Arquitectura, no quadro das iniciativas paralelas ao Festival Renânia do Norte-Vestefália, antecipando o «ano de apresentação» internacional previsto para 1994/95. Mas este é um modelo novo de «exposição de arquitectura», aplicado às particulares características socio-económicas de toda uma vasta região e concebido como um inédito laboratório de transformação da paisagem e das próprias condições de vida numa sociedade já pós-industrial.
NÃO É, de facto, a construção de uma parte de cidade que é o objecto desta IBA, mas um gigantesco projecto de reabilitação integrada (ecológica, urbanística e económico-social) de uma área com dois milhões de habitantes, 17 cidades, entre Duisburg e Dortmund, com uma distância máxima de 80 km e uma superfície total de perto de 800 km2, ao longo do rio Emscher e seus afluentes — um projecto inédito que está a ser desenvolvido em torno do conceito de parque regional, sob o lema utópico «trabalhar no parque».
Sujeita, há um século, a uma industrialização muito rápida e não-planeada, com base nos sectores de produção de massa do carvão, do aço, da química e da energia, a região é agora considerada, com a agonia do modelo de estrutura económica das indústrias pesadas, como a «área mais delicada» do território do Ruhr: uma zona densamente ocupada por instalações mineiras e siderúrgicas já em grande parte desactivadas, com um índice excepcionalmente elevado de degradação física e ambiental, e também com fortes problemas resultantes da estagnação económica e do desemprego.
O projecto «IBA Emscher Park» foi aprovado em 1988 pelo governo social-democrata da região, presidido por Johannes Rau, num momento de apogeu económico da Alemanha, e com o seu sub-título de «Atelier para o futuro das velhas regiões industriais» assume expressamente o carácter de exemplo internacional com vista à «reparação dos desgastes causados pela industrialização, para começar uma nova evolução». As condições económicas criadas pelo actual contexto de recessão generalizada, a que se somam os custos imprevistos da reunificação alemã, talvez impliquem que a experiência do Parque do Emscher venha a ser por muito tempo um caso isolado, mas é notório o seu sentido pioneiro numa situação que é também de viragem civilizacional: o problema ecológico (na Europa desenvolvida, claro, após a transferência das indústrias poluentes e de mão-de-obra intensiva para o Terceiro Mundo) é agora visto como ponto de partida para a criação de novas formas de trabalho, de habitação e de cultura, e, por isso, o programa de intervenção da actual IBA é extensivo a todos os domínios da sociedade, aberto a soluções alternativas nos terrenos do emprego, das novas tecnologias e da gestão dos lazeres.
COM A IBA pretende-se transformar as velhas construções industriais, conservando as que têm valor patrimonial como polos de uma rede museológica descentralizada, reabilitar a natureza envolvente, marcada por terrenos esventrados e colinas de escórias, rios transformados em cloacas de águas residuais correndo a céu aberto e redes de canais já sem serventia como eixos de transporte, recuperar os antigos e degradados bairros operários, e, no fundo, relançar o crescimento económico da região graças à implantação de actividades económicas de novo tipo, sujeitas a drásticas exigências de qualidade. Através do conceito de parque combina-se a intervenção no ambiente natural e no ambiente construído, em torno dos projectos conjugados de parque natural, parque de lazer e parque industrial (e ainda de parque científico, artesanal, de prestação de serviços, etc, sempre na base de micro-localizações atractivas). Globalmente, todo o projecto é concebido como um ensaio de «organização da sociedade futura», caracterizada pela «diferenciação crescente dos estilos e das formas de vida», como oficialmente se admite no Memorando sobre o Conteúdo e a Organização editado pelo Emscher Park.
Ao contrário de anteriores exposições, que privilegiaram a experiência arquitectónica, isolada e espectacular, agora, a reabilitação do ambiente natural e a criação de novas qualidades urbanas numa área deprimida é equacionada globalmente como a condição indispensável para responder em termos económicos e sociais aos efeitos do recuo da indústria pesada em áreas densamente povoadas, através da criação de possibilidades para a implantação de novas empresas, em especial ligadas à prestação de serviços, à investigação científica, à cultura e aos tempos livres, ou a actividades produtivas de escala artesanal. A melhoria permanente e a longo prazo das condições de vida, tal como da qualidade dos espaços urbanos e do funcionamento da comunidade social são apontadas expressamente como as condições do êxito final do projecto da exposição, ultrapassando as ambições propriamente arquitecturais e construtivas das anteriores IBA.
Para coordenar o projecto, nas suas vertentes conceptual e estrutural, foi criada uma sociedade de planeamento de direito privado, com sede na cidade de Gelsenkirchen, dirigida pelo geógrafo Karl Ganser e dotada de 35 milhões de marcos. Mas os investimentos previstos só para os quatro primeiros anos elevam-se a mais de 2,5 mil milhões de marcos, sendo 800 milhões oriundos do sector privado e nomeadamente das empresas proprietárias das antigas unidades fabris, convidadas a promover ou a comparticipar na reconversão dos seus equipamentos já improdutivos — a importância do efeito publicitário da própria IBA é por si só um estímulo atraente para a concentração de novos investimentos.
A intervenção de todos os municípios da região, das organizações económicas e dos sindicatos é uma das regras básicas do projecto, cuja dimensão social se prolonga pela dinamização de diversas formas associativas, cooperativas e autogestionárias que reunem moradores, mulheres, idosos, etc, pela mobilização dos desempregados a longo prazo e, até, por iniciativas originais como a reserva de concursos de arquitectura apenas a mulheres. Mais de 70 projectos desencadeados pela IBA, com carácter de intervenção arquitectónica ou paisagística, semeiam a região de experiências modelares que constituem os «objectos» da exposição.
OS EDIFÍCIOS da antiga mina de carvão Zollverein Schacht XII, em Essen, são um exemplo excepcional de arquitectura da Bauhaus. Desenhado em 1929 por M. Schupp e Kremmer, o complexo servia então o maior e mais moderno poço de extracção do mundo e constituiu, no seu tempo, um exemplo perfeito da aplicação de novos critérios de racionalidade à arquitectura industrial, ao mesmo tempo geométrica e humana, apesar da escala gigantesca, e seguindo uma concepção de projecto que não deixava ao acaso os mais pequenos pormenores de construção ou de mobiliário interior. Em actividade até 1986, o complexo, conhecido como «a mina da Bauhaus» ou «a catedral de Arbell», esteve em risco de demolição até se transformar num dos polos do programa da IBA .
Decorre actualmente a recuperação e a reconversão das instalações, para preservar um monumento técnico e arquitectónico de primeira importância patrimonial e para o destinar a novos usos: aí será criado um centro de colecção e investigação sobre a história da indústria, enquanto outra área se destina a ateliers para artistas e a espaços para exposições temporárias, e outros pavilhões serão confiados ao teatro municipal de Essen, transformando toda a antiga mina num vasto centro cultural. Em preparação está ainda a instalação de um Centro de Design da Renânia-Vestefália e da Faculdade de Design da Universidade de Essen.
Outros equipamentos industriais em transformação são os edifícios classificados da mina Holland, em Bochum-Wattenscheid, de que faz parte uma gigantesca torre metálica conservada como emblema monumental de um novo parque habitacional e profissional, e ainda o grande hall que se destinava ao pagamento dos salários dos mineiros e que constitui um dos mais puros exemplos do estilo expressionista. Neste caso, a intervenção aponta para a criação de um centro industrial ecológico voltado para o textil e o vestuário, com a construção de novas unidades de produção e a criação de áreas de alojamento quer familiar, quer especialmente destinadas à terceira idade e a deficientes.
Em Bottrop, a «mina modelo» de Arenberg-Fortsetzung, que esteve activa apenas entre 1910 e 1930, conta com outra das mais belas «salas dos salários» do Ruhr, neste caso «moderm style», aonde terá a sua sede um centro de fundadores de pequenas e médias empresas a instalar num parque verde de 13 hectares mantidos ao abandono durante 60 anos. A política de emprego esboçada é aqui orientada para as mulheres, com atenção particular às mães solteiras e divorciadas, em conjunção com novos investimentos na habitação social e nos equipamentos colectivos.
A CRIAÇÃO de um parque regional com uma superfície global de 300 Km2 é, no entanto, o primeiro projecto director da exposição, visando a ligação dos espaços verdes isolados e a reorganização paisagística dos terrenos industriais deixados ao abandono. Tratar-se-á de um parque natural contínuo em forma de banda, dotado de um sistema próprio de vias de circulação protegida e caminhos reservados a peões e a ciclistas, com acesso a numerosas atracções naturais, sociais e culturais, e em estreita ligação com os outros dois mais ambiciosos projectos globais: o tratamento ecológico do sistema do Emscher e a reutilização do canal Reno-Herne.
A «limpeza» dos 300 Km do rio e dos seus afluentes tem um prazo de execução de 20 ou 30 anos e integra-se em projectos mais vastos de protecção do Reno e do Mar do Norte, ou de gestão das águas de superfície. Com a industrialização, o seu curso serviu de canal de evacuação a céu aberto das águas usadas pelas minas e unidades industriais, porque a própria densidade da exploração mineira e o solo pantanoso dificultavam a canalização subterrânea. Quanto ao canal, construido entre 1906 e 1914, com seis comportas em 46 km de extensão, e uma diferença de níveis de 37 metros, ele perdeu o seu sentido como via de transporte e dará lugar a novas utilizações nas áreas dos lazeres e dos desportos náuticos. Um ponto central do futuro Parque das Comportas de Waltrop, concebido como parque turístico popular, é um elevador para barcos de grande porte construído em 1899 e utilizado até 1970, já classificado como munumento técnico e integrado no museu industrial descentralizado da Vestefália.
As intervenções nas áreas habitacionais constituem outra das vertentes essenciais do projecto, guiada pela opção de restaurar o conjunto das antigas cidades ou colónias operárias. Entre os polos de intervenção destaca-se a reabilitação do que resta do que se chamou o movimento das cidade-jardim, com origem na Inglaterra e introduzido ma Alemanha por volta de 1900. A recuperação do seu «rosto» histórico pretende ser concorrencial, em termos de qualidade, com qualquer projecto de construção nova.
Entretanto, a intervenção numa região de elevado desemprego está já a ser conjugada com a previsão de um processo continuo de decréscimo do tempo de trabalho, o que leva os planeadores a sublinhar a importância das actividades sociais, culturais e desportivas, quer como ocupação dos lazeres (o «stress» dos tempos livres é visto como tão preocupante como o do trabalho), quer como geradoras de emprego. No processo de experimentação social desencadeado integra-se a valorização das actividades marginais ou alternativas, enquanto mecanismo de integração social e como resposta ao desemprego inevitável de sectores cada vez mais amplos da popluação. A dimensão económica, ecológica e social do trabalho a domicílio é valorizada, tal como a redescoberta do centro do bairro e da cidade como lugar de trabalho. É todo um processo de revisão das concepções e das consequências do progresso, tal como este era admitido no início do século, que se ensaia no projecto IBA como base de um novo futuro. A uma escala afinal ínfima, mesmo no quadro europeu, e sobre o suporte de uma riqueza económica sem paralelo no continente.
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