ARQUIVO
EXPRESSO/Actual de 23 Out. 2004
"ILUMINANDO VIDAS - Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana "
"Na rota de África"
Um panorama da fotografia de Moçambique, vindo da Suíça, com o veterano Ricardo Rangel e os seus discípulos
Foi a cooperação italiana que apoiou, em 1983, a criação do Centro de Formação Fotográfica (CFF), em Maputo, dois anos depois de ter sido fundada a Associação Moçambicana de Fotografia (AMF), por empenho directo de Samora Machel, no contexto de uma guerra civil que iria ainda prolongar-se até 1992. Desde os tempos coloniais e da luta pela independência, a fotografia desempenhou em Moçambique (tal como sucedeu na África do Sul contra o «apartheid») um papel de grande importância na divulgação das realidades do país e como instrumento de propaganda. Sujeitos durante alguns anos a imposições partidárias e burocráticas, os fotógrafos souberam depois conquistar as condições necessárias para intervir com a independência das suas imagens nas novas tarefas da reconstrução.
Foi a cooperação francesa que, em 1994, projectou internacionalmente a obra de Ricardo Rangel ao apresentá-lo nos Primeiros Encontros Fotográficos de Bamako, no Mali, ao mesmo tempo que a parisiense «Revue Noire» dedicava a Moçambique o seu nº 15. Consagrado como um dos grandes fotógrafos africanos, em especial pela série «O Pão Nosso de Cada Noite», realizada nas ruas da prostituição do porto de Lourenço Marques, no final dos anos 60, tirando partido das primeiras películas de alta sensibilidade, Rangel viria a figurar em 1996 na decisiva exposição «In/Sight: African Photographers, 1940 to the Present», no Museu Guggenheim de Nova Iorque, e compareceu de novo em «The Short Century», organizada por Okwui Enwesor, em 2001. Fotojornalista reconhecido desde os tempos coloniais (mestiço grego, africano e chinês, foi, em 1952, o primeiro foto-repórter não branco a trabalhar na imprensa moçambicana), tornou-se depois a figura tutelar da fotografia moçambicana e, aos 80 anos, está ainda à frente do Centro de Documentação e Formação Fotográfica, que sucedeu ao CFF.
Ricardo Rangel, From the series "Our Nightly Bread" , Lourenço Marques 1960's to 1970's
Foi a cooperação suíça que tornou possível a produção e a itinerância da exposição que a Culturgest apresenta no Porto e que já em 2003 foi uma das participações mais destacadas nos Encontros Pan-africanos de Bamako, dando a conhecer os vários discípulos de Rangel, que entretanto foram saindo da sua sombra para construírem obras pessoais, onde as urgências das guerras deram lugar aos ensaios fotográficos individualizados sobre o país e as suas gentes.
O papel e os produtos para as impressões das provas seguiram de Zurique, e todo o projecto - dirigido por Bruno Z’Graggen e Grant Lee Neuenburg, com o livro que o acompanha (ed. Christoph Merian Verlag, 2002)* , incluindo colaborações, entre outros, de Allen Porter, antigo director da revista «Camera» (1965-81), de Simon Njami, fundador da «Revue Noire» e comissário da exposição «Africa Remix», e de António Sopa, investigador do Arquivo Histórico de Moçambique, sobre a história do fotojornalismo local - revela uma programação modelar, que tem continuidade no «site» www.iluminandovidas.org
(sobre o universo da criação africana ver www.universes-in-universe.de).
Ricardo Rangel, Paradox of context, doorman at the 'Moulin Rouge' cabaret, Beira 1965
«Iluminando Vidas» (o título é uma homenagem a Rangel, tomada ao poeta e jornalista Calane da Silva) reúne, além das suas próprias fotografias, mais de uma centena de obras de Kok Nam, outro veterano da imprensa da antiga Lourenço Marques (nascido em 1939, de origem chinesa), que acompanhou depois a segunda guerra da Frelimo, e também de 13 fotógrafos mais jovens, quase todos formados pelo CFF na escola do humanismo fotográfico de intervenção. Com algumas imagens que remontam aos anos 70 e a maioria já mais recentes, a mostra procurou ser representativa das obras individuais dos diferentes autores. Nas imagens de Joel Chiziane, João Costa (Funcho), Rui Assubuji, Alfredo Paco, Luís Basto, Naíta Ussene, Alfredo Mueche, Martinho Fernando, Ferhat Vali Momade, Albino Mahumana, José Cabral, Alexandre Fenías e Sérgio Santimano surgem já, após os anos da guerra civil, a alegria das primeiras colheitas, os mercados populares de Maputo, as brincadeiras das crianças, os corpos pintados de mussiro das mulheres de Cabo Delgado, os pescadores de Nampula, o regresso dos deslocados, etc.
Na sede portuense da CGD, com a sua grande elegância «art-déco», a mostra tem uma montagem de muita qualidade, onde a selecção de obras de cada autor é acompanhada por um painel colectivo, por informações biográficas e um auto-retrato de cada um, por um vídeo realizado no mercado popular do Maputo e ainda por uma vitrina onde se expõem números de 1970 da revista «Tempo», com as famosas páginas fotográficas de Rangel («RR»). Além de expor excelentes fotografias, a Culturgest cumpre um papel de grande importância estratégica ao levar-nos de novo pelas rotas de África.
«Iluminando Vidas - Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana»
Culturgest, Porto, até 12 de Dezembro
* Exhibition Catalogue: Bruno Z´Graggen, Grant Lee Neuenburg (editors)
ILUMINANDO VIDAS Ricardo Rangel & the Mozambican Photography
Christoph Merian Publishers Basel 2002, 170 pages, more than 100 photographs, in two versions: English/Portuguese (softcover) / German/French (hardcover)
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