Autor e actor
Duas perspectivas paralelas da obra de Jorge Molder
EXPRESSO/Actual de 06-01-07
Pormenor da instalação «Algum Tempo Antes», em Madrid
Em Madrid, o jogo de Molder com a auto-representação, o uso da sua própria imagem-máscara oferecida à interrogação de ser ou não ser auto-retrato, sempre organizada em sequências que põem a questão de um sentido narrativo específico (um episódio, uma acção, um título), é prolongado até novo limite: uma réplica do corpo do artista ocupa o lugar central da galeria. Segura um catálogo com uma fotografia sua (as mãos que guardam a luz, da série «The Portuguese Dutchman», 1990) e está parcialmente voltado para uma parede onde se vê um rectângulo negro (janela ou espelho obliterados, papel de impressão queimado pela luz).
Esta outra presença, em versão corporal imóvel, conduz a habitual reflexão sobre identidade e duplicidade (disfarce, ilusão, enigma, ficção, etc.) para outro patamar de intencionalidade, que se pode entender como mais dramático e talvez mais irónico. O autor-actor atribui-se aqui a condição de espectador da sua própria obra e deixa certamente sugerida ou implícita a identificação com a figura do comissário ou director de um centro de arte - sabendo-se que essa é a sua actividade paralela, à frente do CAM. Numa entrevista do catálogo, Molder refere-se a essa problemática identidade dupla: «O facto de dirigir um centro de arte inibe uma ampla série de contactos e trocas, por razões de decência, morais e deontológicas.»
À volta desse corpo, na mesma instalação que dá o título à mostra (já antes apresentada no CGAC de Santiago de Compostela), dois conjuntos simétricos de seis elementos mostram outras folhas negras e duas mãos enluvadas, uma delas com a mancha vermelha de uma gota de sangue. É, sem dúvida, a mesma luva de detective presente na série «The Secret Agent», de 1991, que tem um papel destacado nas duas exposições - todo o subnúcleo das caixas é exposto em Coimbra, e Delfim Sardo, o comissário no CAV, relaciona-o com Joseph Cornell e Marcel Broodthaers, além de referir Joseph Conrad.
É nessa série, tal como no livro intitulado Joseph Conrad, que Molder terá levado mais longe a tentativa de explorar uma possível condição ficcional do seu trabalho fotográfico, distinta quer da narratividade literária quer da ilustração, antes de essa construção de um personagem, ao mesmo tempo agente e narrador, se converter na imagem repetitiva do autor - o seu duplo e ele mesmo. À acção do «agente secreto» associa-se a ideia de enigma, e a busca que ele conduz é tomada como metáfora do trabalho do artista.
Em Coimbra, a recuperação de outro trabalho de 1991, feito com a colecção zoológica da Universidade («Uma Taxidermia de Papel»), liga-se a uma nova série de muito grande formato, em provas digitais, onde a imagem se aperta sobre o olho do fotógrafo-fotografado, jogando com dificuldades e derivas de reconhecimento que o título sublinha: «Comportamento Animal». Outras dificuldades de identificação são as de «Desconhecimento Imediato», onde o rosto é sujeito a camuflagens, ocultações ou acidentes sucessivos, apontando a autoviolência (a auto-imolação?) como decisiva questão inscrita em várias outras séries. Igualmente constante é a presença de múltiplas citações ou referências cultas nos diversos trabalhos de Molder, como sucede no vídeo inédito Vasistas, onde o Quadrado Negro, de Malevitch, é prolongado por memórias cinéfilas. As listas de livros e filmes que se incluem no final da mostra de Madrid são um útil guia para a vasta teia de interesses e informações do artista.
Jorge Molder
«Algún Tempo Antes»
Fundación Telefónica, Madrid, até dia 21
«Condições de Possibilidade»
Centro de Artes Visuais, Coimbra, até dia 28
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