EXPRESSO/Actual de 10-02-2007
A verdade da ilusão
Uma incursão do ilusionismo próprio da pintura figurativa de Manuel Amado no mundo do fingimento do teatro
«A Última Ceia dos Polichinelos», 2005
O lugar de exposição, histórico-patrimonial, é inesperado. É também inesperado o espaço amplo das salas comunicantes que acolhem as 50 telas mostradas, um corpo vasto de trabalho, tematicamente unificado e erguido ao longo de quatro anos de produção, de 2002 a 2006. Também é uma surpresa a aparição de figuras numa pintura que se tem fixado em lugares vazios, mesmo quando é muito forte a impressão de que alguém habita as salas e corredores desertos, ou que alguém passou ou vai passar pelas suas vistas interiores (e íntimas) ou pelas paisagens exteriores de ruas e jardins.
Parece, de facto, haver sempre uma natureza ficcional na pintura de Manuel Amado, presente nesse estranho e breve intervalo que pode ser a expectativa ou o vestígio de alguma acção, momento fixado algures entre passado e futuro, embora a primeira aparência seja sempre a de uma silenciosa imobilidade descritiva. É algo que transporta o ilusionismo da representação desde a possível referência fotográfica para a vizinhança do literário e em que se associam aos cenários, sem decifração acessível, a sugestão de possíveis memórias pessoais e a invenção de enredos prováveis. Não se trata nunca de contar uma história, mas de tornar perceptível que ela poderia ter acontecido ou talvez venha a acontecer, porque está sempre presente (como imaginário) algo mais do que aquilo que exactamente vemos (como imagem). Talvez por isso se tenham sucedido os romancistas e poetas nos textos de apresentação das suas exposições.
Noutros casos poderia dizer-se que é a presença substancial da luz (a luz e a sombra projectadas com rigor geométrico de arquitecto) que assume o protagonismo no quadro, e é então o observador, o do local e depois o da sua representação, que ganha a condição de personagem central de uma situação talvez memorialista, talvez efabulatória, em que alguma inquietação está sempre presente.
Se a fronteira do realismo é sempre instável, dissolvendo a possibilidade de uma designação coerente, a pintura de Manuel Amado aproxima-se de alguns realismos que se poderão apelidar de metafísicos pela presença imanente e silenciosa de algo que se enuncia para além da exacta descrição da realidade, dos quais Hammershoi e Hooper são expoentes. São por natureza exteriores ou alheios às correntes dominantes e, em especial, aos realismos mediáticos e mais mediatizados, mas essa é precisamente uma das suas qualidades. Hammershoi e Hooper são pintores do tempo do cinema, um dos primórdios e outro dos seus tempos clássicos; Manuel Amado revela-se mais interessado no teatro, que constituiu, aliás, parte decisiva do seu passado pessoal - é filho de Fernando Amado, autor, encenador e actor, fundador da Casa da Comédia e do Teatro Ginásio, e ele mesmo actor enquanto estudante.
Aquela possibilidade sempre sustida de irromper em cena (na cena do quadro) uma outra realidade, rasgando a imobilidade dos cenários, dá agora lugar declarado, desde o título escolhido, à promessa concreta do espectáculo. Há ainda corredores e salas (de teatro) vazias, mas o que interessa ao pintor é o palco e o que nele acontece. Tornam-se manifestamente cenários o que em obras anteriores podiam ser vistas de interiores, e o mundo das aparências, o palco, desconstrói-se quando passa a ser observado dos dois lados da acção, da sala e dos bastidores.
O fingimento e o seu reverso (o verso dos adereços), que é ainda ilusionista, montam-se em palco através do recurso a um dos tipos mais codificados do teatro, a «commedia dell’arte», e são também os seus personagens que dão corpo à acção imobilizada nos quadros, tornados eles mesmos adereços de um espectáculo que agora não é teatro mas pintura.
Manuel Amado
«O Espectáculo Vai Começar...»
Galeria de Pintura do Rei D. Luís, Palácio da Ajuda, até 17 de Março
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