Política cultural, crónica
EXPRESSO/Cartaz Actual, pág. 3, 13-Mar.-1993
“Publicidade paga” (S. Carlos)
Da nota oficiosa à publicidade paga vai um progresso que deve ser
reconhecido, mas o processo de estabelecer a verdade que convém tem o
mesmo fundo autoritário. O governante actual descrê do livre jogo da
informação e paga (usando os fundos públicos) para defender a sua
política, tal como o de outros tempos impunha a censura e a publicação
obrigatória da sua versão.
«Afinal há ópera no S. Carlos?», anúncio de página inteira (EXPRESSO de
6 de Março), é apenas a confirmação de uma política quase permanente de
impedimento da actividade livre da Imprensa por parte da SEC, que
recusa por sistema responder às interrogações dos jornalistas e mantém
a proibição absoluta de os serviços e responsáveis departamentais
prestarem informações directas. Num momento tão marcante da vida
cultural que justifica essa forma insólita de autocelebração, seria
normal que se promovesse uma conferência de Imprensa ou que os
responsáveis pelo Teatro acolhessem os jornalistas numa visita às
instalações renovadas e na apresentação pública da programação. É
porque há muita coisa a esconder que se prefere a protecção de uma
página paga.
Quem «andava por aí a dizer», «alto e bom som», que o Teatro de S. Carlos ía ser encerrado era o próprio secretário de Estado, e logo em Junho de 1990 — o que uma nota da respectiva administração, «na sequência de informações menos exactas que têm vindo a público...», corrigiria em 21 de Setembro do mesmo ano. E quem admitiu, depois, ao sabor do improviso, fazer da sua orquestra o pólo lisboeta da Régie Sinfonia? Ou transferir a ópera para o Centro Cultural de Belém, mantendo o S. Carlos talvez como um salão de festas para alugar a particulares? Ou fazer suportar a actividade operática pela iniciativa mecenática, retirando-se o Estado da sua responsabilidade neste sector?
As hesitações e contradições verificadas ao longo de dois anos justificaram plenamente que logo no final de 1991 cerca de 300 personalidades, de Nuno Abecasis a José Mattoso, de Sequeira Costa a Olga Cadaval, de Rui Vilar a Freitas do Amaral, de Nobre da Costa a João Paes, de Emannuel Nunes ao duque de Bragança, se associassem a um abaixo-assinado da iniciativa dos «Amigos do S. Carlos» manifestando o seu repúdio perante a delapidação do património cultural implicada pela extinção do Teatro enquanto estrutura de produção artística.
É a eles que agora responde Santana Lopes na sua página paga?
Ao falar das obras de beneficiação realizadas, o anúncio esconde que ficaram por fazer outras obras mais profundas que há muito se reclamam, e que têm a ver com a modernização do palco e o seu apetrechamento para a montagem de espectáculos de acordo com padrões técnicos próprios de um grande teatro nacional (ver EXPRESSO/«A Revista» de 6/3/93, «A casa da sorte»). Quanto às obras feitas nas zonas do público, também necessárias, essas poderiam ter sido feitas num dos prolongadíssimos intervalos entre temporadas a que a tutela forçou a anterior gestão do TNSC. «Todos os que andaram a dizer que o TNSC tinha acabado podem agora ir ver o que lá foi feito» (sic).
A verdade é que se o Teatro esteve encerrado foi para que se extinguisse a anterior Empresa Pública, e é isso que também esconde a prosa agarotadamente desafiadora do anúncio. A prevista Fundação, que lhe sucederá, aguarda ainda a promulgação do respectivo decreto fundador e o bicentenário começa a ser comemorado numa situação de total vazio institucional, com espectáculos negociados pelo Fundo de Fomento Cultural e com músicos contratados a prazo. Quanto aos cantores residentes, a companhia extinguiu-se e contarão apenas, alguns deles, com contratações individuais para uma ou outra produção (ver «A Revista» de 5/12/92, «O canto interrompido»).
Entretanto, o indigitado presidente da Fundação dava razão, há dias, aos que contestavam a irregularidade de todo o processo: «A própria comisão liquidatária tem como indicação da SEC admitir pessoas, precariamente e só com contratos a prazo», disse Machado Macedo («Público», 25/2/93). Descuidadamente, confirmava-se a existência de um despedimento colectivo do pessoal do Teatro, cujo artifício legal Mário Soares tentou contrariar, mas que o Tribunal Constitucional não confirmou, contra um sólido parecer jurídico de Marcello Rebelo de Sousa.
Mas é o próprio fundamento da fórmula Fundação que está por provar, quando finalmente se constata que o seu orçamento só conta com 75 mil contos assegurados por três empresas mecenas (SOMEC, TLP e BCP), enquanto a SEC entra com 700 mil, a RDP com 300 e a RTP com 50 — o que perfaz um total de 1.125 mil contos, embora Machado Macedo já adiante que «o que se vai fazer no TNSC custa no mínimo, mas no mínimo, 1.800 mil contos». E não se esqueça que se teve de indemnizar largas dezenas de funcionários, técnicos e músicos, que voltaram, afinal, a ser contratados...
Se, como todos os estudos avisavam, a participação privada é sempre mínima em estruturas culturais desta dimensão — raramente ultrapassando um montante superior a cinco por cento, nos países europeus —, o que ganha o Estado em transferir para uma fundação sem capital próprio mas de direito privado a gestão de uma das componentes da acção cultural a que está obrigado e que, quase por inteiro, efectivamente paga? Por outro lado, até onde irá a febre das fundações, a seguir a Serralves, ao CCB e ao TNSC? Será a próxima vítima o D. Maria, onde D. Agustina espera despudoradamente pela reforma?
Há temporada em S. Carlos apenas por imposição do bicentenário. Seguir-se-ão as comemorações da capital cultural, o que significa que estão garantidos os espectáculos até final de 94. Mas, de facto, há fortes riscos de que essas actividades de circunstância vão apenas fazer vingar a lógica das festividades, que Santana Lopes tanto aprecia, contrariando o estabelecimento gradual e continuado de normais condições de funcionamento. Nenhuma palavra oriunda da SEC, mesmo sob a forma de publicidade paga, veio até agora definir um projecto para o TNSC. Paulo Ferreira de Castro, o responsável artístico pela temporada do bicentenário, terminava, em 14 de Dezembro de 1991, um artigo no EXPRESSO com palavras que são mais do que nunca verdadeiras: «Pode a SEC asseverar que o S. Carlos, por agora, não fecha: não conseguiu ainda foi garantir que o Teatro abra (para qualquer coisa como uma temporada normal).»
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