EXPRESSO/Cartaz, 20-03-93, p. 17
“Obras “em curso” (Património . IPPAR)
DAR FUTURO AO PASSADO
Galeria de Pintura do Rei D. Luís
A concepção arquitectónica do espaço da exposição, de João Bento de
Almeida, é excelente. O catálogo encadernado, com realização gráfica do
Atelier B2, de José Brandão e Teresa Cabral, é um magnífico volume de
colecção.
Assim se asseguram as aparências de uma exposição que, com direito a
inauguração pelo primeiro-ministro, assinala os três anos da conturbada
presidência de Antero Ferreira no IPPC, actual IPPAR (Instituto
Português do Património Arquitectónico e Arqueológico), no momento em
que transita para outra presidência, a da Fundação das Descobertas-CCB.
Autocelebração pela SEC da sua acção num dos sectores que mais vezes
foram objecto de denúncia e autocrítica públicas, num quadro geral em
que, com as comemorações do S. Carlos, a abertura «apressada» do CCB e
o início próximo do Festival de Teatro, se pretende exibir obra feita,
o essencial da operação reside precisamente na iniciativa de fachada,
na acção de «charme», no «encher o olho» do visitante incauto. Aliás,
esta é apenas mais uma das exposições sobre o que se faz e não faz no
âmbito do património (a última foi em 91, nos Jerónimos), e certamente
a mais cara: o «Público» referiu custos da ordem dos 30 mil contos.
O fulcro da exposição e do catálogo está no sumário de cerca de 70 intervenções «em curso» em monumentos nacionais. Num cenário criado por seis pavilhões fechados, erguidos no interior da Galeria, sucedem-se os painéis individuais dedicados a cada intervenção, e corresponde-lhes uma seriação de fichas no catálogo descrevendo sinteticamente cada uma. Era a ocasião ideal para se saber em que estado estão as obras e quais os projectos em andamento.
Para isso, e para que se fosse registando a história da preservação patrimonial (mas os objectivos são apenas de propaganda), era conveniente discriminar-se com rigor em que data foram lançados os concursos de ideias para a valorização de imóveis ou conjuntos monumentais, quando se assinaram os contratos com os arquitectos responsáveis pelas operações de reabilitação e reutilização, quando foram entregues os projectos e abertos os concursos das empreitadas, quando se iniciaram, se se iniciaram, as obras e qual a sua situação actual.
Ver-se-á, caso a caso, que a rubrica «Fase do Projecto/obra» é quase invariavelmente preenchida por duas palavras simples que não querem dizer nada de concreto e que ocultam numerosíssimas situações de adiamento de intervenções, interrupções de contratos, paralisações de obras: está tudo «EM CURSO».
De igual modo, a caracterização das intervenções é reduzida ao mínimo, imprecisa e incompleta, por vezes errada ou desactualizada. Exemplo: Igreja e Convento de Santa Maria do Bouro, «recuperação e conservação da igreja, recuperação e remodelação do convento», obras respectivamente atribuídas aos arquitectos Humberto Vieira e Eduardo Souto Moura, no valor de 88 mil contos, «em curso».
Na Igreja e Mosteiro de Tibães, um projecto de grande dimensão com prevista instalação de uma pousada surge referido como «estudo arquitectónico do mosteiro, recuperação do aqueduto do mosteiro, reconstrução de coberturas e outros trabalhos de conservação, restauro de dois altares da Igreja do Mosteiro»; a obra é da autoria de Alcino Soutinho, no valor de apenas 13 mil contos, e está «em curso» — sabe-se que, após algumas intervenções de emergência, o projecto se encontra parado por a Enatur ter atribuído uma adaptação a pousada ao arq. Hestnes Ferreira, o que levou A. Soutinho a recusar uma recuperação patrimonial em regime de «propriedade horizontal».
Quanto ao Palácio da Ajuda, poderá recordar-se que, à data da demissão de António Lamas, se fazia a apresentação pública do projecto de Gonçalo Byrne para a construção do fecho e remate do Palácio, com a construção de uma nova Ala Poente, e a urbanização das áreas envolventes (uma síntese da respectiva memória descritiva é publicada no catálogo). Essa é mais uma intervenção adiada, embora se refiram «obras de beneficiação e reparação de coberturas; exposição dos 'Tesouros Reais' (obras de adaptação e montagem)». Os custos referidos são de 455 mil contos, ainda que o projecto total se eleve a quatro milhões, num total de mais de dez milhões de contos que serão viabilizados pelos resultados da urbanização prevista. Também está em «em curso».
No final de 1989, foi divulgada a assinatura de cerca de 25 contratos com arquitectos de renome para a recuperação e reutilização de outros tantos monumentos. É sabido que no ano seguinte se suspenderam quase todos os projectos e obras, e que só no final de 1991, ou já em 1992, alguns deles se reactivaram, com atraso manifesto de utilização de verbas comunitárias conseguidas no âmbito do FEDER. Os casos do Convento de Cristo, com a charola ocupada por andaimes desde 1989 (arq. Santa Rita), do Convento de Jesus em Setúbal (arq. Pedro Vieira de Almeida), das ruínas de Conímbriga, onde se aguarda há anos a cobertura da Casa dos Repuchos, do Convento de Santa Clara-a-Velha em Coimbra, atribuído por concurso a João Rapagão e César Fernandes, da Casa Gouveia em Évora, com projecto acabado em 1988, do Mosteiro de Alcobaça (arq. Gonçalo Byrne), são apenas algumas das situações gritantes de inoperância e adiadamento de intervenções planeadas.
Entretanto, a exposição ordena as intervenções por ordem geográfica e mistura os projectos de grande fôlego com as pequenas operações de restauro de coberturas, concedendo a todas elas o mesmo espaço e importância. Torna-se impossível distinguir os projectos que vêm de antes de 1990 e os que foram lançados posteriormente, os que estão em execução e os que esperam melhores dias. Alguns casos de obras efectivamente concluídas ou em execução, como o Palácio da Pena ou os Museus Soares dos Reis, Machado de Castro e de Arte Contemporânea, dissolvem-se por entre os projectos suspensos. A confusão é total — voluntariamente ou por incompetência, é o que fica por saber-se.
Mas esse núcleo essencial da exposição é envolvido — num percurso de difícil entendimento pelo visitante, pela falta de indicações visuais — por secções dedicadas aos antecedentes históricos da política de salvaguarda do património, aos seis conjuntos monumentais a que a UNESCO atribui a classificação de património mundial e às técnicas de conservação de diferentes materiais, da pedra aos rebocos e pinturas exteriores. É a ocasião para uma exibição desgarrada de objectos e documentos, onde o interesse individual das peças se perde na ausência de qualquer discurso expositivo (exemplo: subsecção «Metais», com uma escultura romana em bronze, uma escultura de Rodin comprada em 1934 pelo MNAC, um catavento medieval, um parafuso de latão, um ferrolho de ferro, etc.).
A mesma seriação de temas, e ainda o património arqueológico, é tratada no catálogo através de uma extensa sucessão de textos, que constituem, quase sempre, mais abordagens genéricas e teóricas do que o testemunho sobre as intervenções «em curso». Destaquem-se pela sua importância, entre outros, os de Jorge Custódio sobre a salvaguarda do património «De Alexandre Herculano à Carta de Veneza», de Francisco Dias sobre o Núcleo Histórico de Angra do Heroísmo, de Adília Alarcão («Os metais»), Cláudio Torres («O adobe e a taipa»), Fernando Real («A pesquisa arqueológica em Portugal») ou Francisco Alves («A arqueologia na frente aquática em Portugal»). Se a esses textos falta, em geral, a relação com a realidade concreta da acção do IPPAR, é apesar de tudo possível encontrar referência às dificuldades de financiamento no caso das pesquisas arqueológicas: «A actividade do sector dispõe de orçamentos insuficientes para os programas normais de investigação, salvaguarda, conservação, valorização de estações arqueológicas e divulgação.»
É outro o objectivo da operação, bem explícito nos prefácios sucessivos de Santana Lopes («O Governo não descansa no seu afã de proteger e recuperar o património cultural nacional»), Antero Ferreira («Esta exposição afasta de uma vez o espectro da indiferença, do descaso, do abandono... Nas praias do desencanto, os cépticos e os habituais pessimistas estão mais sós») e ainda de Eduarda Coelho (vice-presidente do IPPAR) e Mafalda Magalhães Barros (directora da Galeria). Mas a fachada abre fendas por todo o lado, como sucede aos monumentos.
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