Exposição no Centro de Arte Moderna, Fundação Gulbenkian
EXPRESSO 22 de Maio de 1999
"Amor e crime"
A SÉRIE «O Crime do Padre Amaro» foi exposta pela primeira vez na Dulwich Picture Gallery, a mais antiga galeria pública de Londres, famosa pelas suas obras-primas europeias do séc. XVII. A exposição decorreu em Junho de 98, com o apoio da Gulbenkian, que agora a apresenta já ao lado da série seguinte («Sem Título»). Entretanto, chegou a prever-se que estas pinturas desenhadas a pastel representassem Portugual na Bienal de Veneza deste ano, se se concretizasse a construção de um pavilhão nacional nos «Giardini», para cujo projecto Siza Vieira fora convidado.
Antes ou para além do romance de Eça de Queiroz, através do qual Paula Rego voltou a trabalhar sobre um tema português, a pintora tomou como motivo de inspiração os quadros de Murillo na colecção Dulwich ? uma Madonna do Rosário, a Menina com Flores, para o qual terá posado a filha do pintor, e duas cenas de género com crianças do povo (Dois Rapazes do Campo e um Miúdo Negro e Convite ao Jogo da Péla). No catálogo londrino, o director do Museu referia que «nos quadros de Murillo as raparigas do mercado e as crianças da rua são geralmente vistas como personagens amáveis e até sentimentais, mas a um olhar mais atento as expressões parecem ambíguas e as figuras estão envolvidas por misteriosas sombras. A juventude e a beleza, em Murillo, são sempre ameaçadas pela decadência e a mortalidade. Paula Rego respondeu a essa subtil combinação de encanto e perigo com um poderoso conjunto de obras em que se associam a fé, a luxúria e a feminilidade».
Nos comentários que escreveu para acompanhar as pinturas, Paula Rego conta como foi impressionada pelos rapazes vestidos de mendigos nas obras de Murillo e, em geral, na colecção do Museu, pela importância do vestuário, das rendas e veludos. «Isso deu-me a ideia de um drama em trajes de época ('a costume drama'). Gosto de vestir as pessoas nas pinturas (...) tal como se vestem as bonecas quando se é pequeno.» A importância das roupas, que são usados nestes quadros como os figurinos no teatro, relaciona-se também com a revisitação da pintura antiga que Paula Rego já fizera nas suas «Histórias da National Gallery» (o actual A Mãe recorda A Prova, um desses quadros de 1990). Para além das qualidades picturais das texturas, pregas e rendas que são trabalhadas com a riqueza matérica do pastel, o vestuário e os seus panejamentos têm uma dimensão ficcional tão determinante como as atitudes das personagens. Os vestidos envolvem e acentuam a sensualidade das mulheres, protegem, escondem e seduzem. Em dois quadros, constroem a estranha ambiguidade erótica das cenas em que Amaro, cercado pelas mulheres, aparece vestido com uma saia.
Paula Rego não ilustrou O Crime do Padre Amaro, nem pintou seguindo a cronologia da sua acção. «Escolhi um romance muito português, porque senti que precisava de actividade social em vez das coisas que se encontram nos contos populares. O Crime do Padre Amaro critica a sociedade, é muito bem observado e uma leitura deliciosa, mas acima de tudo é uma história de amor». Entretanto, a escolha deste livro é também assumida pela artista como uma homenagem prestada ao seu pai, que lhe transmitiu o espírito crítico sobre a realidade do país e que admirava Eça de Queiroz como um exemplo do que de melhor existia em Portugal. Uma outra linha de observação, mais privada ainda, relacionaria os personagens retratados e as cenas de composição mais complexa com a identidade dos modelos com que a pintora trabalha, a partir do desenho de observação («é tudo copiado à vista») e sempre mergulhada numa teia pessoal de cumplicidades e afectos: um amigo muito próximo («uma pessoa mascarada de Padre Amaro»), a constante Lila, que também foi a enfermeira que acompanhou o período final da doença do seu marido («ela tem o poder de se transformar em tudo, como uma actriz»), por vezes uma das filhas, etc.
A versão de Paula Rego não é a história de pecado e inocência que sustenta a sátira anticlerical a preto e branco de Eça de Queiroz. Dominação e dependência, desejo e culpa, não serão aqui os pólos de uma dicotomia maniqueista que talvez molde a visão masculina do mundo, mas que é posta em causa na densidade mais ambígua de um olhar de mulher, com que se revelará um outro lado mais profundo da vida, com os seus segredos, as suas máscaras, «mafias» e armas femininas. Com o misterioso poder revelador das suas imagens, capazes de circulam entre os dois lados dos espelhos, e que voltam a fazer da ilusão figurativa o poder de imaginar um outro real, Paula Rego quer mostrar que «a mulher é uma história por contar». Porque, como ela diz, «a história das mulheres nunca foi contada em pintura».
Um anjo guardião e vingador preside a esta série, alheio ao texto do romance e com a presença bem física de um corpo de mulher. É uma imagem vinda de um mundo antigo, uma imagem dúplice do castigo e do perdão, com os símbolos da Paixão que são a espada e a esponja, mas é também uma imagem inteiramente terrena, arrancada à pintura religiosa para intervir no presente. «O romance é apenas um ponto de partida, um detonador, e depois as imagens tomam a dianteira, como um cofre cheio de segredos, como as bonecas russas».
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