in Tabacaria (Revista de Poesia e Artes Plásticas), nº2, ed Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Inverno, pp. 19-23.
"Pintura de histórias"
Paula Rego sempre atribuiu a Walt Disney um lugar destacado entre as
recordações da infância e o filme «Branca de Neve e os Sete Anões», em
especial, foi referido como a oportunidade da «descoberta de um mundo
novo» (1). O cinema — a noite iluminada pelas imagens em movimento,
antes destas se banalizarem no pequeno formato televisivo — era a
abertura ficcional, mais poderosa que as imagens dos livros, sobre os
mistérios da vida, as suas emoções e ameaças. No mundo protegido em que
cresceu, a ida ao cinema, refere a pintora, era o contacto iniciático
com o exterior, uma aventura desejada com prazer e pavor. «Branca de
Neve» e «Pinóquio» foram apontados, em várias entrevistas, não só como
permanentes memórias mas como filmes com lugar cativo entre os seus
favoritos, ao lado da descoberta mais tardia de Buñuel.
Não admira, por isso, que tenha sido o mundo de Disney o tema escolhido
por Paula Rego para responder ao convite para participar numa exposição
destinada a celebrar o centenário do cinema. «Spellbound: Art and Film»
teve lugar na Hayward Gallery, de Londres, em Fevereiro, com a presença
de dez artistas plásticos e cineastas britânicos de diversas gerações.
Sabe-se como a fidelidade a um imaginário de infância foi, na obra da pintora — em especial quando o regresso à pintura directa, depois da prática da colagem, se associou à recuperação de uma figuração legível —, a via privilegiada para a tradução projectiva de um universo temático em grande parte centrado no seu próprio quotidiano. Memória ficcionada e transposição dos conflitos do presente, onde realidade e imaginação mutuamente se actualizam, e encobrem, o desenho e a pintura de Paula Rego são inseparáveis da criação de histórias. A sua obra não é literária, mas tem com o imaginário ficcional uma relação privilegiada.
Tomados como protagonistas, os animais dominaram os trabalhos dos primeiros anos 80, da série «O Macaco Vermelho», de 81, à «Menina e o Cão», de 86, em intrigas de sexo e poder, protecção e humilhação, sedução e violência. A metamofose que assegura a humanização dos animais e a animalização dos humanos continua a tradição das fábulas e dos contos tradicionais, adoptada também por Disney, mas, onde os animais são chamados a exprimirem as relações entre os humanos, as versões amáveis e moralistas dos contos dão lugar à revolta e à abjecção.
Com frequência, Paula Rego recorreu à adaptação de argumentos e à apropriação de personagens pré-existentes, como sucede com as «Óperas», em 83, e com a série das Vivian Girls, em 84. Interessa-lhe também a prática considerada «menor» da ilustração, como em «Nursery Rhymes» ou «Peter Pan». «Se a história me é 'dada', tomo liberdades de modo que se adapte à minha experiência pessoal, faço-a chocante», escrevera Paula Rego num breve texto que acompanhou a sua participação na Bienal de São Paulo em 1985, representando a Grã-Bretanha. A pintora acrescentava: «Os meus temas favoritos são os 'jogos' provocados pelo poder, o domínio e as hierarquias. Dá-me sempre vontade de pôr tudo de pernas para o ar, desalojar a ordem estabelecida».
Nas obras mais recentes os animais foram gradualmente substituidos pela representação naturalista de pessoas reais, numa evolução que se processou a par da densificação do trabalho pictural. Paula Rego abandona uma expressão próxima da garatuja e da banda desenhada, ao mesmo tempo que a composição se concentra na cena única e o espaço se torna mais complexo, redescobrindo o volume, a perspectiva e as sombras. Em 92, as «Histórias da National Gallery», histórias sempre, foram a oportunidade do encontro com a tradição do museu, surpreendente situação de aprendizagem vivida por uma artista que já alcançara a maturidade criativa e a consagração internacional.
Nas «Dog Women», expostas em 94, a animalização da figura humana é assinalada no título da série e parece estar por vezes presente na postura dos corpos. Mas nesses trabalhos, com que se iniciou o uso sistemático do pastel, uma personagem única de mulher concentra e silencia o contéudo narrativo na representação do corpo — agora praticada sobre a observação do modelo. É com essa série que a pintora começa a trabalhar diante do modelo vivo durante toda a execução e já não apenas no momento do estudo preparatório. A solidez da figura, a densidade dos volumes, das roupagens, partem de um confronto do olhar com a verdade do corpo, de um face a face de dois corpos que se reconduz à fisicidade da figura construída, com uma gravidade inédita na sua obra.
Para a exposição «Spellbound», Paula Rego prestou homenagem ao cinema e a Disney com a realização de três grupos distintos de imagens, usando o pastel sobre papéis de grande formato: quatro trabalhos baseados na história da Branca de Neve, três sobre Pinóquio e um grupo mais vasto referido à «Dança das Horas» do filme «Fantasia» («Dancing Ostriches», onde mulheres vestidas com tutus negros tomam o lugar das avestruzes bailarinas do filme).
Mais distanciadas de um estrito conteúdo narrativo, essas mulheres sublinham pela própria configuração sensual dos seus corpos, na linha das «Dog Women», a distância do imaginário infantilizado de Disney e ganham a dimensão perturbadora do mito: poderiam ser figuras de coros da tragédia grega ou, disse-se, as sereias-pássaros da lenda homérica. Por outro lado, é provavel que estas amadurecidas bailarinas sejam também uma referência directa a Degas, sugerida pelo próprio interesse no uso do pastel.
Apesar de o desenho animado se encontrar na origem de toda esta série ele não conduziu a qualquer retorno a uma expressão gráfica mais ingenuista, grafitista ou próxima da BD, como fora antes o desenho de Paula Rego. É outra a direcção de trabalho actual, e a inspiração nos filmes de Disney articula-se, afinal, com o encontro com a tradição histórica visitada na National Gallery» e com o aprofundamento do trabalho perante o modelo. Partindo de Disney, mas também de uma nova gravidade da figura, a pintora parece interrogar uma iconografia mitológica activa no presente.
Pertencem à série dedicada à história da Branca de Neve os três desenhos-pinturas reproduzidos, numa sequência de episódios que respeitam a estrutura narrativa do conto sem que dele sejam a ilustração. É à reinterpretação do conteúdo arquetípico da narrativa adaptada por Disney que se assiste, e, em especial, sob o efeito da liberdade com se transformam os personagens e as situações, é a metamorfose da sua moralidade convencional que as imagens propõem.
Na primeira, o conflito entre Branca de Neve e a madrasta é situado sem equívoco no terreno da competição sexual e a cena da inspecção da roupa interior, substituindo-se ao questionar do espelho (quem é ainda a mais bela?), não pode ser mais explícita a respeito da afirmação da feminilidade que motiva a inveja de uma madrasta representada de salto alto e mini-saia, atributos juvenis da atracção feminina, enquanto Branca de Neve se envolve ainda em vestes de menina que já não ocultam a maturidade de um corpo robusto. A fita vermelha que recolhe os cabelos marca a despedida da infância, e talvez seja possível associar, como propõe Marcia Pointon no catálogo de «Spellbound», o exame das cuecas à evocação de um vasto repositório das roupas maculadas da história da pintura religiosa, a faixa de Cristo crucificado, o lenço de Verónica e o santo sudário.
Desfalecida, na segunda imagem, Branca de Neve ficou certamente sufocada depois de trincar a maçã envenenada, mas o facto do fruto não ser visível proporciona à cena maior ambiguidade. A mão que recobre as pernas com a saia («as saias têm implicações eróticas, cobrem o corpo e guardam muitos segredos», dissera Paulo Rego) e a fita caída dos cabelos sugerem outros episódios. O corpo tombado e a pose convulsiva tomam o lugar das Vénus reclinadas e trazem à memória a tentação de Eva ou os anjos caídos. O anedotário dos anões e amáveis animais da floresta desapareceu, como tudo o que desvia a intriga do seu núcleo pulsional e a destina a caminhos de sublimação. A adolescente nada tem a ver com a ingenuidade convencional de Disney nem, ao contrário do que se pretendeu, com o universo de Balthus, na fisicidade de um corpo que está mais próximo da pintura de Lucien Freud e não é fantasmática projecção masculina.
A última das imagens substitui-se ao estereótipo da intervenção salvadora do príncipe, para restabelecimento da ordem «natural» e substituição da figura paterna. Branca de Neve é vista montando uma manta de pele (que era ainda o cavalo do príncipe num estudo preparatório, tornando-se esta ausência final numa mais explícita libertação de qualquer tutela masculina). Desaparecida a conclusão normalizadora, a figura afirmará a sua identidade sexual num espaço de liberdade ou de fantasia auto-erótica. Mas a mão que segura um cavalete é a evidência da sessão de pose e do fazer da pintura.
Na sucessão dos tempos e das cenas, manutenção de um modelo narrativo que tem raros paralelos na pintura contemporânea (a fragmentação, a deslocação, a sobreposição são práticas mais correntes de cumprir a suposta impossibilidade da figura e da narração, exigida pelo formalismo da «autonomia do campo visual»), a série reencontra a tradição dos temas míticos, das fábulas bíblicas ou das vidas de santos (que a pintora visitara no painel «O Jardim de Crivelli»). As histórias destas pinturas refazem uma «pintura de história» que já não visa o sublime, o heróico ou o divino.
(1) John McEwen, «Paula Rego», ed. Quetzal/Gal. 111, 1992, pág. 30.
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