Por ocasião da retrospectiva no CCB em 1997, com uma entrevista realizada em colaboração com o Fernando Diogo. E a 08-02-97, "Paula Rego em Liverpool"
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EXPRESSO/revista de 31 Maio 1997
Desde que Paula Rego passou a ser uma famosa pintora inglesa, tem sido mais difícil acompanhar-lhe a obra em Portugal E houve mais algumas mudanças na sua pintura, depois de ter sido nomeada artista associada da National Gallery, em 1990. Trabalhar no Museu, em contacto directo com a pintura antiga, parece ter trazido uma nova gravidade, como se observa nas peças mais recentes, realizadas a pastel e servindo-se da presença constante de modelos. A morte do marido, o pintor Vic Willing, em 1988, terá sido outra condicionante do mesmo percurso, numa obra sempre próxima da vida.
Paula Rego, Dancing Ostriches (parte de tríptico) 1995, Pastel s/ paper montado em alumínio
150 x 150 cm (© All rights reserved - The Saatchi Gallery - London Contemporary Art Gallery)
A montagem da retrospectiva no CCB segue um itinerário que parece conduzir-nos até à série da «Mulher-Cão», mostrada pela primeira vez em Nova Iorque. Torna-se evidente como essas figuras, agora isoladas, são um ponto extremo da sua obra e um lugar (provisório) de chegada, desde logo pela intensidade que atinge a presença física dos corpos. É já outra, aí, a relação da pintora com o imaginário: com as memórias de infância, com a evocação dos lugares e acontecimentos da sua vida adulta ou com os contos tradicionais e as inspirações literárias de que sempre se serviu.
O mesmo se passa nos mais recentes trabalhos, realizados para uma exposição comemorativa do centenário do cinema («Spellbound: Art and Film», na Hayword Gallery, de Londres, em 1996), onde prestou homenagem a Walt Disney. Ainda que Paula Rego tenha partido do filme Fantasia e das suas versões de Branca de Neve e Pinóquio, é agora um trabalho de observação e de «cópia» que lhe «liberta a imaginação».
Com as «Histórias da National Gallery» (que a Gulbenkian mostrou em 1992), tinham surgido nas suas obras as primeiras referências notórias à pintura antiga e aos temas religiosos, através dos quais se exprimiram desde sempre os terrores e prazeres da vida comum — e não apenas mensagens de autoridade e hierarquia.
As «Mulheres-cão» são figuras heróicas, sendo personagens de ficção e abordagens intencionais da condição das mulheres, depois de as santas que representou no tríptico do Jardim de Crivelli, instalado em permanência no restaurante daquele Museu, já terem sido, numa idêntica simultaneidade, figuras de mulheres do povo. São sempre mulheres portuguesas, de corpo curto e perna gorda, que sofrem e se defendem; mas agora, por vezes, é o rosto da pintora que se adivinha a impor-se ao do modelo. As «Avestruzes Dançarinas» de Fantasia podem ser também seres mitológicos — sereias-pássaros da lenda homérica?, hárpias? —, que a pintora ambicionava mostrar numa capela. Haverá um anjo caído (ou uma descida da cruz?) na Branca de Neve sufocada, uma Madalena na imagem final da série e talvez no Gepeto lavando Pinóquio se reconheça uma outra «Pieta».
Tal como sucede com duas outras obras de transição, A Primeira Missa no Brasil e Caritas, de 1993-94, que se medem com as grandes «máquinas» oitocentistas, tudo acontece como se a desafiadora modernidade de Paula Rego ensaiasse a possibilidade actual da pintura de história, o género máximo da tradição clássica e o mais raramente tentado no século XX, quase sempre tido por impossível... ou proibido pelo «progresso». Poderia dizer-se que da pintura de género, com os temas de costumes e cenas quotidianas das séries anteriores, passou à pintura de história (interpretações do mito, do sagrado, da história) e foi fazendo também experiências de retrato e natureza morta — mas essas classificações pouco importam à pintora, indiferente aos rótulos.
Em 1985, Paula Rego dizia, a propósito das «Óperas»: «Os meus temas favoritos são os "jogos" provocados pelo poder, o domínio e as hierarquias. Dá-me sempre vontade de pôr tudo de pernas para o ar, desalojar a ordem estabelecida». Nada de essencial terá mudado nessa luta, mas foi possivelmente dado um passo radical ao trocar a subversão e a desordem por uma ambição mais grave. Mudando a ironia em tensão dramática.
Para isso foi-lhe necessário, na originalidade do seu itinerário, já depois de ter posto de parte os antigos processos de corte e colagem, deixar a anterior figuração de banda desenhada e aperfeiçoar o desenho de observação — «a pessoa olha e então os olhos e a mão funcionam juntos», diz a pintora. Progressivamente, Paula Rego foi recuperando um a um recursos da pintura, em geral abandonados: a perspectiva, a sombra, a densidade da construção espacial, a intensidade dos corpos. Que agora são corpos humanos, embora muitas vezes animalizados, depois da humanização dos animais que era constante nas suas «histórias».
Não se trata nesse caminho de revivalismo, nem de instaurar um qualquer conservadorismo pictural, num contexto presente em que tudo é possível e quase nada tem qualquer decisivo significado. Aliás, não nos enganemos com a celebridade da pintora: depois da marginalidade em que viveu — durante 27 anos — até fazer a sua primeira exposição em Londres, o recente reconhecimento inglês não significa a entrada noutros circuitos internacionais que passam pela Documenta de Kassel e por outras mostras onde desfilam as modas.
A sua obra, portuguesa em muitas das suas referências, está relacionada com a de alguns pintores ingleses, que são hoje a outra vertente de uma modernidade que nunca foi, ao contrário do que alguns pretendem, apenas vanguardista (vertente sempre ocultada no trânsito das exposições nacionais, como se notou nas exposições britânicas «A Ilha do Tesouro» e «Life-Live», muito recentemente). Paula Rego, na sua pintura actual, deve ser vista na sua proximidade, e na sua diferença, com as obras de Bacon, Lucien Freud, Kossof, Kitaj (americano de Londres) e Hockney, também com Balthus, talvez com Aricka e alguns outros. Paula Rego reconhece-o e desmente-o, identificando-se apenas com Rafael Bordallo Pinheiro...
Quando é forçada a falar dos seus quadros, Paula Rego explora, habitualmente, os seus sentidos narrativos e conta — ou inventa para a ocasião — histórias dos personagens que pintou. Essas pistas podem ser chaves de leitura ficcional, e até escondidamente biográficas, mas também são ecrãs que iludem a dificuldade de falar do que num quadro é mais do que imagem, do seu modo de fazer e da diferença que existe entre uma pintura e uma narrativa. O que a sua pintura agora «diz» nasce de um corpo a corpo com o modelo e vê-se também no corpo a corpo perturbante que o espectador estabelece com as figuras pintadas.
O que importa nas suas últimas obras — está patente na escala das figuras e na matéria que as constrói — «é a presença física e a sensualidade do olhar...», afirma a artista. Como se comprova pela comoção que os seus últimos trabalhos, num limiar em que o olhar dificilmente se sustenta, suscitam em alguns observadores, esta pintura não se verá como um exercício de virtuosismo formal e mero retorno a uma figuração tradicional. E é certamente decisivo que a radicalidade da sua pintura recente seja um dizer-pintar feminino.
2 - Paula Rego em Liverpool
Actual 08-02-97
Em Liverpool, abre hoje ao público uma retrospectiva da obra de Paula Rego, que inclui mais de 80 trabalhos e também estudos e desenhos preparatórios, alguns exibidos pela primeira vez. A mostra é apresentada pela extensão da Tate Gallery naquela cidade (até 13 de Abril) e virá em Maio para Lisboa, incluida na programação do CCB.
Paula Rego é referida nas informações da Tate como «um dos pintores britânicos mais respeitados e influentes», e a retrospectiva de Liverpool constitui, aí, o acontecimento principal no programa das celebrações do centenário da Tate Gallery. Uma outra mostra antológica da pintora fora apresentada em Londres, na Serpentine Gallery, em 1988, também com circulação portuguesa, no Centro de Arte Moderna e na Casa de Serralves. Uma primeira digressão de obras de Paula Rego («Obras escolhidas 1981-86») decorrera já em 1987, através de várias cidades da Grã-Bretanha, a que se seguiram novas «travelling exibitions» em 1990-91, com a série de gravuras «Nursery Rhymes», e em 1991-92, com as «Histórias da National Gallery», que a Fundação Gulbenkian igualmente exibiu.
Inaugurada em 21 de Julho de 1897, a Tate Gallery de Londres celebra este ano o seu centenário, com um vasto programa que inclui ciclos de conferências, edições e uma série de emissões da BBC, para além de uma série especial de exposições e de uma remontagem da colecção permanente em torno de uma selecção das 100 obras mais populares e significativas do seu acervo.
Lovis Corinth (1858-1925), uma das maiores figuras da arte alemã do século XX, que é também «um dos mais fascinantes artistas 'desconhecidos' do período moderno», segundo a Tate, é o primeiro artista apresentado (20 de Fev.-4 de Maio), através de uma retrospectiva que já foi mostrada em Munique, Berlim e São Francisco. Segue-se o pintor americano Elsworth Kelly (n. 1923), entre 12 de Junho e 7 de Setembro, encerrando-se o ano (16 Out. a 4 Jan. 97) com «Rossetti, Burne-Jones and the Symbolists», focando a relação entre o grupo dos artistas vitorianos «pré-rafaelitas» e o movimento simbolista continental. A mostra de Kelly circulará por Nova Iorque, São francisco e Munique, enquanto a última será segidamente vista em Munique e Amsterdão.
Outras exposições serão dedicadas a Turner, Hogarth (comemorando o terceiro centenário do seu nascimento), Francis Towne (1740-1816) e Mondrian, bem como aos artistas contemporâneos Luciano Frabro e Kathy Prendergast.
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