Exposição no Centro de Arte Moderna, Fundação Gulbenkian
EXPRESSO 22 de Maio de 1999
"Mostrar o inominável"
É A PRIMEIRA vez que Paula Rego não dá títulos aos seus trabalhos. Não é por acaso que tal acontece ? e a prudência, se fosse essa a razão da artista, recomendaria antes a escolha de uma qualquer denominação metafórica. Estas pinturas não contam «histórias», não têm um pretexto literário, nem se poderão ler, ao contrário da sua obra anterior, como se fossem irreverentes devaneios da imaginação. «Sem Título» também não é aqui a fórmula usada com frequência para nomear a pintura abstracta, excluindo outro assunto que a própria realidade pictural do quadro.
É antes, de um modo que se torna para o observador ainda mais incómodo e desafiador, a convocação do inominável, a designação de algo que a sociedade prefere não reconhecer e não enfrentar, identificando-o como uma falha ou um abismo. E é a denúncia desse secretismo, que ao mesmo tempo se aponta com a crueza de um panfleto e se deixa ainda permanecer mais adivinhado do que dito. É de um tema tabu, o aborto que uma sociedade hipócrita continua a condenar à clandestinidade, como vergonha e crime, que estas imagens são a revelação, e certamente é esta a primeira vez que tal tema é abordado na pintura.
Esta série de trabalhos, que foi anteriormente mostrada em Madrid, na Galeria Marlborough, por ocasião da feira Arco, é uma denúncia do aborto clandestino e foi iniciada pela pintora como uma reação directa às condições em decorreu o recente referendo, especialmente face à elevada abstenção que se poderia interpretar como desinteresse perante o problema. Cronologicamente, ela surge como uma exacta sequência da série sobre o Crime do Padre Amaro, cuja história se «resolve» por um infanticídio, salvando-se as conveniências da moralidade pública com a morte de Amélia e a clandestina entrega do filho às mãos da «tecedeira de anjos» (ou «abafadeira», segundo outra expressão mais popular). «Fiz estes trabalhos para Portugal, revoltada com o que se passou no referendo sobre o aborto», diz a pintora, que têm ainda nas suas memórias vividas do país as situações dramáticas que testemunhava na Ericeira quando as mulheres dos pescadores, rodeadas de filhos, lhe pediam o dinheiro necessário para os desmanchos.
Paula Rego desenha adolescentes e jovens mulheres que sofrem, que escondem a cara ou enfrentam o espectador, culpando-o com o olhar, algumas delas prostradas sobre a cama, outras agachadas sobre um bacio ou um balde, outras ainda contorcendo-se com dores, entregues apenas a si própias e a uma imensa solidão. São retratos de sofrimento e angústia, de ansiedade, desolação, medo, humilhação e vergonha, feitos de uma violência contida, sem sangue nem gritos, com uma construção figurativa formalmente austera, sempre rigorosa e simples, que os traços precisos dos rostos, os espaços fechados e a estrita economia dos cenários tornam ainda mais realistas e pungentes. Entretanto, o que as reproduções reduzidas podem sugerir de ilustrativo nestas imagens, ganha no contacto directo com a pintura a escala de um confronto físico entre os corpos e olhares das figuras e os dos observadores, com uma intensidade quase insuportável. Em Londres, referiu-se o parentesco com a fisicalidade intensa dos corpos pintados por Lucian Freud; em Madrid, recordaram-se as figuras chocantes de Solana (1886-1945), o inclassificável pintor da «Espanha Negra».
Nesta série, onde é sempre uma mulher só que interpela o espectador, Paula Rego segue um processo de composição próximo da anterior sequência da «Mulher Cão», mostrada no CCB, por vezes ampliando o espaço para marcar a presença ausente dos homens. Mas não se atenuou nestas obras de intervenção mais imediata a estranha mistura de mágoa e espera, de sensualidade e revolta, que imprimira a essas outras figuras femininas, onde pela primeira vez subvertia a suavidade habitual do uso do pastel com uma energia rudemente matérica. Estas mulheres não são apenas personagens passivas que se queixam da fatalidade de um mundo adverso, e não deixa de estar ambiguamente presente em vários destes rostos a força altiva de um olhar de determinação, de desafio e de dignidade, sublinhada nas cores vivas de um vestido ou de um lenço de cabeça. Se o aborto é um tema tabu, é também porque ele, enquanto poder de destruição, é indissociável de outro poder feminino, o de dar a vida. «É a razão pela qual as mulheres são temidas. O último poder é o de destruir», disse a artista à escritora Maggie Gee, num artigo do «Daily Telegraph» (de 15 de Fevereiro). Não são só vítimas vulneráveis e indefesas estas mulheres que sofrem: «A vida continua. Elas sobreviverão.»
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