ARQUIVO _ EXPRESSO/Revista de 06 Março de 1993, pp 52 - 56
Margens
“Abismos da visão: fronteiras da razão”
"Visões Paralelas" é uma grande exposição que se mostra no Museu Reina Sofia em Madrid, vinda de Los Angeles e com viagem marcada para Basileia e Tóquio. Aí se apresentam em paralelo obras de artistas modernos e de marginais (loucos, autodidactas mais ou menos excêntricos, "visionários compulsivos") ensaiando uma interpretação polémica da evolução da arte do século XX. Um campo aberto à investigação ou a defesa de uma nova mística"
(Sobre a exposição «Visões Paralelas — artistas modernos e arte marginal», de Maurice Tuchman e Carol S. Eliel / Visiones Paralelas, Museo Reina Sofia, Madrid / Parallel Visions, County Museum of Art. Los Angeles)
FOI certamente Klee o primeiro artista do século XX a apontar as criações dos doentes mentais (a par da arte das crianças e dos povos «primitivos») como exemplos a seguir para «reformar a pintura», afastando-a das «correntes da tradição de ontem», ou seja, do academismo.
Estava-se então em 1912, Klee expunha em Munique com os expressionistas do grupo do «Cavaleiro Azul», e a sua proposta, embora só brevemente formulada, tinha já um sentido mais radical que o interesse dos impressionistas pelo exotismo das estampas japonesas, a sedução de Gauguin pelos «selvagens» da Polinésia, a admiração dos modernos pela ingenuidade do Douanier Rousseau e a descoberta pelos pintores parisienses, os «fauves» e Picasso, do primitivismo da «arte tribal», a partir de 1906. Num processo de continuada contestação da cultura instituída e num contexto artístico marcado pela urgência da ruptura e da inovação, tratava-se de colher inspiração no «selvagem» que sobrevivia nas franjas do mundo civilizado, na espontaneidade da expressão infantil e na suposta sinceridade sem freio dos alienados, como uma verdade mais autêntica e profunda que o artista de vanguarda deveria tomar por modelo da criatividade.
É toda a fortuna que teve ao longo do século essa mesma proposta, sucessivamente renovada pelos surrealistas e por Dubuffet, que constitui o tema de uma grande exposição com origem no Museu de Los Angeles e agora apresentada em Madrid no Museu Rainha Sofia (até 9 de Maio), antes de completar uma volta ao mundo com escalas em Basileia e Tóquio. Uma exposição de grande importância, mesmo que transporte uma carga ideológica de sentido, afinal, obscurantista.
«VISÕES Paralelas — artistas modernos e arte marginal», dirigida por Maurice Tuchman e Carol S. Eliel, toma por objectivo específico documentar a atracção e a influência exercidas sobre os artistas modernos pela arte dos marginais ou visionários compulsivos, caracterizados estes como «pessoas autodidactas, às vezes mentalmente transtornadas, que criaram a sua obra em situações em geral isoladas da cultura ortodoxa, e em particular da complexa infra-estrutura do mundo artístico.» Se as fórmulas são em geral imprecisas, o que se junta nesta exposição, às obras de artistas profissionais, são a chamada arte psicótica ou psicopatológica, as manifestações da arte mediúnica, que no início do século foram muito divulgadas no quadro das práticas espíritas, e ainda as criações obsessivas de indivíduos «originais» mas mais ou menos integrados na sociedade, que por vezes se aproximam da arte «naïf», popular ou folclórica.
Não é a primeira vez que se expõem num museu, conjuntamente, obras de artistas «ortodoxos» e alienados: fazia-o, logo em 1936, o MoMA de Alfred H. Barr, na mostra «Fantastic Art, Dada and Surrealism», a que se sucedeu, apenas um ano depois, em Munique, a exposição «Arte Degenerada» («Entartete Art»), da iniciativa de Hitler e num sentido cultural totalmente oposto (a sua reposição americana em 1991 teve origem, aliás, no Museu de L.A.). Integrada como elemento de subversão ou condenada como exemplo de decadência rácica, a expressão da loucura surgia, em ambos os casos, sempre incluída entre outras formas de marginalidade ou excentricidade.
Por outro lado, desde os anos 20 que se publicavam e expunham obras de doentes mentais, na sequência das investigações feitas por psiquiatras inovadores, valorizadas pela sua beleza própria ou utilizadas como meio de diagnóstico ou de tratamento. De 1922 data o estudo fundador de Hans Prinzhorn, A Arte dos Doentes Mentais, e já em 1928 se faziam em Paris exposições comerciais de arte psicótica, frequentadas nomeadamente por Breton.
Em 1945, também em Paris, apresentou-se uma exposição de arte psicótica no Museu Denys Puech, por iniciativa de um psiquiatra do hospital de Sainte-Anne, Gaston Ferdière; em 1967, no Museu de Artes Decorativas de Paris, mostrou-se a colecção de «Art Brut» de Dubuffet, com imenso sucesso público; mais recentemente, em 1979, em Londres, na exposição «Outsider Art», Roger Cardinal propôs uma nova perspectiva global da questão.
DE FACTO, «Visões Paralelas» distingue-se pela dimensão original do seu projecto de confronto directo entre as obras de 34 artistas psicóticos ou mediúnicos, autodidactas marginais ou visionários compulsivos e as de 40 artistas profissionais ou ortodoxos, num total de 225 trabalhos que são mostrados em constante paralelismo, tanto de intenções como de conteúdos formais. E, em especial, por querer ser a proposta de um novo entendimento da modernidade à luz desse cruzamento.
Sublinhe-se, entretanto, que esta iniciativa do L.A. County Museum of Art surge na directa sequência de uma outra mostra itinerante de vasta ambição. «The Spiritual in Art. Abstract Painting 1890-1985» veio documentar, em 1986, o interesse pela mística e pelo ocultismo nos artistas responsáveis pela afirmação da arte abstracta (de Kandinski, Mondrian, Malevitch até ao presente) e procurava reinterpretar sob essa influência todo um corpo histórico do modernismo habitualmente visto como afirmação da racionalidade e das ideologias do progresso. Tratava-se então de valorizar, através de textos e de imagens exotéricas, «esse outro modo de percepção» que buscam os artistas não figurativos, ou seja, a procura de «uma ressonância, uma intenção, uma emoção e uma espiritualidade maiores» (M. Tuchman), como linha condutora subterrânea da modernidade, ocultada sob as análises formalistas e materialistas da crítica nova-iorquina.
Na realidade, ambas as exposições se constituem como uma mesma tomada de posição perante a arte contemporânea, com o objectivo explícito de contribuir para a sua refundação sobre a base «dos valores de autenticidade, presença viva, força descarnada». Trata-se, como também diz M. Tuchman, de valorizar «o exacto contraponto da tradição raciocinativa e filosófica da arte do século XX», agora numa situação global em que são comummente denunciados os «excessos» e a academização de muitas criações contemporâneas, ou em que o paradigma da invenção, próprio do modernismo, teria deixado de ser operativo.
Apontando uma mesma «intenção profunda e sentida» às obras dos ortodoxos e dos marginais, todas elas nascidas de um obscuro «contacto com forças fundamentais» e todas igualmente válidas como arte, ou seja, caracterizadas por serem «enunciados visuais fortes, que interpelam esteticamente e implicam intensamente» o espectador, Tuchman e Eliel contrapõem ao entendimento da arte como exercício da inteligência e dos sentidos — onde o apelo da transcendência ou a manifestação de inquietações existenciais ou metafísicas pode permanecer, ou não, como questão em aberto — a defesa de uma simplificada «estética da presença» em que a criação é percebida como manifestação directa do ser e do absoluto expressa na sinceridade do artista, ou seja, uma variante ou uma aproximação ao misticismo.
CURIOSAMENTE, é a coberto de um aparente progressismo da nova linguagem americana «politicamente correcta», e de uma ideia de integração da loucura que retoma temas da antipsiquiatria, que se estabelece uma posição crítica contra a «ortodoxia» da modernidade com um profundo sentido retrógrado, conduzindo, afinal, num contexto actual de indefinida pós-modernidade, a um retorno a posições românticas e pré-modernas.
Mas uma coisa é o discurso que pretende fundamentar a exposição, revelando uma flagrante ausência de operacionalidade teórica, e outra é a importância da apresentação efectiva de numerosas obras raramente vistas, bem como a possibilidade de relacionamento e análise proporcionada pela sua reunião. Tanto mais que um catálogo-livro de mais de 300 páginas, com doze ensaios que fazem o ponto sobre a matéria, abordando-a de diferentes perspectivas e em geral com um sentido contrário aos preconceitos dos comissários, fica como uma síntese de referência obrigatória.
Aí se poderá verificar, em primeiro lugar, que o contacto com a loucura, enquanto discurso formulado pelos artistas, teve sempre por base o conhecimento das tentativas científicas de entender a ocorrência dos distúrbios mentais, e não o acesso directo à palavra desse «outro» radical que seria o alienado não hospitalizado. Tal como a descoberta dos «primitivos» se faz no contacto com as colecções etnográficas, e a da criatividade infantil resulta dos esforços dos renovadores da pedagogia no início do século, o interesse pela «verdade» dos loucos só é tornado possível pelos avanços da psiquiatria, nomeadamente pela descoberta do inconsciente por Freud. É nas clínicas de Heidelberg (H. Prinzhorn), de Sainte-Anne e Rodez (com Gaston Ferdière), de Viena (a Künstlerhaus criada por Lev Navratil), etc., que sucessivamente se processa a descoberta da arte dos alienados. Os artistas loucos conhecidos são, de facto, casos clínicos excepcionais, escolhidos e coleccionados por psiquiatras de entre gigantescas massas de doentes anónimos.
Entretanto, deverá notar-se que é também no terreno da escolha dos artistas contemporâneos representados, em vários casos apenas demonstrativa da importância das conjunturas locais de Chicago ou Los Angeles, que a exposição se torna mais discutível. Nesse carácter regionalista manifesta-se uma outra componente da oposição cultural entre uma mítica América profunda e Nova Iorque, a metrópole dominada por emigrados e formas de pensamento europeus. Aliás, esta e a anterior mostra do L.A. Museum («The Spiritual in Art») são um quase exacto contraponto a duas outras mega-exposições do MoMA: «Primitivism in 20th Century: Affinity of the Tribal and the Modern», organizada em 1984 por William Rubin, e «High & Low: Modern Art and Popular Culture», em 1990, dirigida por Kirk Varnadoe, ambos herdeiros do formalista Alfred Barr.
A ACTUAL exposição de Madrid desenvolve-se em cinco espaços que associam a produção dos artistas ortodoxos de tempos sucessivos a obras marginais que foram expressamente valorizadas por aqueles. Não se expõem marginais que não tenham sido conhecidos por artistas profissionais, nem, por outro lado, estes são convocados apenas por razões de contiguidade estilística ou semelhança formal — todos eles reivindicaram alguma vez (ou reconhecem em informações do catálogo) a deliberada ou espontânea identidade entre as atitudes criativas de que partiram e os estados alucinatórios ou outras situações de exterioridade radical à tradição cultural dominante.
A primeira secção, dedicada à «geração expressionista» (um título equívoco), inclui apenas obras de Klee, em confronto com as esculturas hermafroditas de Karl Brendel coleccionadas por Prinzhorn, e de Alfred Kubin, outro artista de «Der blaue Reiter» que visitou a clínica de Heidelberg e que explicitamente associou o seu simbolismo fantástico e sombrio com «os milagres do espírito da arte, que emergem como um amanhecer de profundidades que estão muito para lá do pensamento e da reflexão».
É naturalmente mais vasto, a seguir, o sector surrealista, com Breton, Max Ernst, Dalí, Hans Belmer, Roland Penrose e Victor Brauner, e também Artaud, mas este incluído entre os marginais e apenas com obras do seu período de internamento. Em paralelo estão representados os médiuns Augustin Lesage, Joseph Crépin e Hélène Smith, os doentes mentais August Neterer, Adolf Wölfli e Aloïse Corbaz, e os artistas marginais Friedrich Schröder-Sonnenstern e Scottie Wilson, principais protagonistas da vaga de curiosidade pelas artes não ortodoxas que se manifestou a partir dos anos 20, com grande aceitação popular, e que a partir do final da Segunda Guerra conheceria um novo incremento por acção de vários psiquiatras e em especial de Jean Dubuffet, num processo continuado até final dos anos 60.
Com formação médica e conhecedor de Freud, Breton interessou-se pela exploração dos resultados criativos da renúncia ao controle consciente, como chave para uma «autenticidade total». O transe mediúnico, considerado psiquicamente equivalente à revelação do mundo interior dos doentes mentais, as experiências da possessão e os estados hipnóticos foram entre 1919 e 1923 experimentados deliberadamente pelos poetas que participaram nas primeiras movimentações surrealistas. É nessa actividade que tem origem a afirmação do automatismo como base do processo criador, primeiro no campo da poesia e a seguir no terreno da expressão gráfica. Conhece-se a importância futura dessa procura da expressão automática na abstracção gestual americana, num processo que vai de Masson e Gorky a Pollock — mas a exposição é prudente no seu discurso e não inclui estes artistas.
Um pouco mais tarde, o visionarismo da arte dos doentes mentais, na qual «os mecanismos de criação são libertados de todos os entraves», é tomado como paradigma da «beleza convulsiva» programaticamente defendida por Breton, sendo muitas vezes tomado como objecto de citação pelos artistas da tradição figurativa do surrealismo que a exposição apresenta.
Mas Roger Cardinal, num notável texto do catálogo, vem contrariar os paralelismos fáceis, apontando a opção de Breton pelo silêncio quanto à experiência directa de comportamentos psicóticos e mediúnicos do breve «período dos sonhos» que precede o primeiro Manifesto, e também a sua procura de uma caracterização mais poética que marginal ou contestatária para a atitude criadora, onde se revela um interesse sempre prioritariamente estético sobre os objectos.
«EXPRESSIONISTAS abstractos» é o título abusivo de uma terceira secção que inclui Dubuffet e Alfonso Ossorio (o responsável pela divulgação da colecção de «Art Brut» na América, entre 1952 e 62), e também o grupo CoBrA representado por Karel Appel. Gaston Chaissac, Louis Soutter e Heinrich Anton Muller são os novos marginais acrescentados à série anterior, toda ela, em geral, igualmente objecto de colecção e edição por Dubuffet. São sempre imagens estranhas e inquietantes, onde dominam a repetição, o estereótipo, o preenchimento minucioso e decorativo das superfícies, o gosto pela geometria, as figurações delirantes, os corpos fragmentados ou mecanizados, a arbitrariedade das cores e o seu uso por vezes simbólico, a multiplicidade dos pontos de vista. Mas Soutter foi um vangabundo cultíssimo que Le Corbusier, seu primo, levou a expor em galerias, e Chaissac um artista excepcional que precedeu muitas das fórmulas de Dubuffet.
Este é, entretanto, o polémico herói de uma tripla batalha, algo paradoxal nos seus efeitos conjugados: a divulgação e museologização da arte dos marginais e alienados, que reuniu numa colecção actualmente depositada em Lausanne; o combate teórico contra a «asfixiante cultura» burguesa, cuja contestação marcaria fortemente o final dos anos 60, articulando-se com o movimento da antipsiquiatria e a confrontação política nas ruas; e, em simultâneo, a imposição da sua imensa obra própria, construída em grande parte sobre a adopção directa dos processos marginais e sobre a vontade do escândalo. Uma obra muito oficialmente consagrada, em França, como a mais importante da segunda metade do século.
A sua intervenção, relacionada com a do grupo CoBrA (e com a Internacional Situacionista, muito próxima deste), terá então introduzido a diferença essencial no relacionamento entre arte e a marginalidade, ou seja, a passagem da procura da beleza, que interessava aos surrealistas, para a defesa do feio e do agressivo, num processo de radical desestetização da arte que defendeu em intensa actividade panfletária: a tradição da arte seria um obstáculo a uma criatividade humana universalmente partilhada. Do primitivismo tomado como aspiração da verdade e do sentimento passar-se-ia então a um irracionalismo «reorganizado sobre uma base eficiente» (Harold Rosenberg) e tomado como elemento de uma global subversão social.
NUM QUARTO espaço reúnem-se artistas da Europa Central ainda em actividade (Rainer, Baselitz e Penk) e, com mais largas representações, os membros da chamada Escola de Chicago (Leon Golub, Westermann e o grupo dos imaginistas). Os europeus Paul Goesch e Carlo e os americanos Joseph Yoakun, Martín Ramírez e Henry Darger são os novos marginais incorporados na corrente da exposição.
Arnulf Rainer, vienense que recentemente foi objecto de uma retrospectiva em Serralves, é um dos artistas que mais longe levou a procura, nos anos 60, de uma experência de identificação com estados psicóticos, nomeadamente com a utilização de alucinogénios. Baselitz e Penk, vindos de Berlim Oriental, partem de experiências de exclusão e de marginalidade forçada, e, se tomaram ocasionalmente por inspiração artistas esquizofrénicos suecos do final do século XIX (Ernst Josephson e Carl Fredrik Hill) e também Artaud, não o fizeram como simulação da loucura mas antes numa atitude de reencontro com elementos da tradição expressionista.
Já quanto aos artistas de Chicago se está perante uma situação local resultante do conhecimento da acção de Dubuffet e de um interesse por artistas autodidactas, excêntricos e populares que prolonga tradições americanas de busca de referências nacionais em práticas diversas da componente racional e clássica da história da arte.
Leon Golub começou por inspirar-se na «arte tribal» americana e procurou, em episódicas obras dos anos 50, experimentar visões interiores características da esquizofrenia; seguiria depois um curioso percurso de base realista e de motivação social. H.C. Westermann foi um artista voluntariamente marginal, autor de construções absurdas próximas do artesanato popular. Ray Yoshida, Jim Nutt, Gladys Nilson, Barbara Rossi, integram o «grupo imaginista», variando entre o interesse directo por expressões visionárias ou ingénuas e uma pintura próxima da arte Pop, mas algo paródica. Roger Brown, mais recente, reivindica-se de múltiplas influências primitivas e irracionais, sistematizando um vocabulário figurativo herdado dos artistas populares numa estilização que recorre a marcas com características luminosas das imagens televisivas, acompanhada por sugestões metafísicas.
MAS É na parte terminal da exposição («Contemporâneos») que se manifesta a sua orientação mais discutível, exactamente quando se pretende prolongar até à actualidade, como um movimento ainda de sentido global, um processo que conheceu ao longo dos anos 60 o seu último sentido programático colectivamente inovador.
Os exemplos fornecidos são, outra vez, os de percursos artísticos definidos nessa década: por um lado, Jim Dine, Oldenburg e Red Grooms, na América, em situações iniciais associadas, com Allan Kaprow, ao processo dos «happenings», ambientes e estética «junk» (lixo); por outro, Niki de Saint-Phalle e Tinguely, na Europa, caracterizados pela atracção dos ambientes visionários construídos — o «Palais Idéal» do Facteur Cheval, já visitado por Breton, as posteriormente descobertas «Watts Towers» de Simon Rodia (Los Angeles) e «House of Mirrors» de Clarence Schmidt (Woodstock, Nova Iorque), documentadas fotograficamente na exposição.
Artistas mais recentes como Schnabel, Jon Borofsky e Baechler, Anette Messager e Christian Boltansky, são todos eles casos de situações singulares já vividas num contexto pós-moderno em que o recurso à atitude ou à «temática» da loucura é apenas a escolha de uma tradição cultural, entre outras tradições disponíveis e igualmente integradas no universo da arte. Novamente num plano de mero interesse regional, surgem ainda Andy Nasisse, Italo Scanga, Gregory Amenoff e Walter Navratil (filho do psiquiatra austríaco Leo Navratil), como testemunhas de um interesse pelo primitivismo que ora se associou à «bad paiting» ora se define como reafirmação folclorista.
Na mesma secção apresentam-se obras do reverendo Howard Finster, um visionário tranquilo recuperado pelo circuito artístico e que em 1984 foi integrado na representação americana à Bienal de Veneza («Paraíso Perdido, Paraíso Reencontrado», de Martha Tucker, também apresentada na Gulbenkian). E em especial de Henry J. Darger (1892-1973) que é um dos mais curiosos casos de recente divulgação, com o interesse suplementar de ser o inspirador da série das «Vivian Girls» de Paula Rego.
Filho de um pai inválido, foi internado aos oito anos numa instituição para atrasados mentais, de onde fugiu aos 16 anos; encontrou emprego como servente num hospital e aí se manteve até à reforma, com 71 anos. Solitário durante toda a vida, recolheu a um asilo seis meses antes de morrer, abandonando no seu quarto um inacreditável espólio de escritos e desenhos, de que fazem parte, entre outros textos, os 13 volumes de mais de 14 mil páginas de A História das Meninas Vivian nos chamados Reinos do Irreal, da tempestade da Guerra Glandeco-Angeliniana causada pela Revolta dos Meninos Escravos e os 154 desenhos e colagens aguareladas que a ilustram. Para lá da imaginação delirante dos episódios, observa-se a invenção de processos gráficos próprios, que passam do recorte e do decalque de material impresso para o recurso a ampliações fotográficas que encomendava para as composições de maior formato.
Secretamente, trabalhara a vida inteira num relato imaginário de guerras, cataclismos, torturas sangrentas e castigos divinos, uma epopeia imaginária passada num mundo infantil alternativo sempre ameaçado de destruição. A história das sete irmãs Vivian, que são inocentes personagens de livro infantil e guerreiras indestrutíveis, é narrada numa escrita compulsiva, enciclopédica e gramaticamente insólita, que mantém um constante diálogo com Deus e veicula perversas conotações sexuais. John M. MacGregor, no catálogo, considera-a o documento mais importante da arte marginal americana e coloca a hipótese de Darger ter sido um génio potencial esmagado por uma infância infeliz.
A relação entre o génio e a loucura é um tema antigo, de que Aristóteles já se ocupara, e que os casos de Piero di Cosimo, Goya, Blake, Géricault e Van Gogh, entre muitos outros, oferecem matéria bastante de investigação. A exposição e o seu catálogo não encerram a questão, mas documentam como o interesse pelos abismos imaginários proporcionados pela loucura se incorporou na história da vanguarda artística do século XX, como origem de inovações formais ou instrumento de contestação cultural e social.
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