"Os lugares da luz"
Expresso / Revista de 13-05-95
«Oriente.Ocidente»
Lagar de Azeite, Oeiras
Uma certa retórica dirá que todas as viagens foram feitas, que tudo
está visto ou que nada se pode distinguir no fluxo vertiginoso das
imagens. Por isso, alguns fotografam o suposto fim da fotografia,
fazendo da cegueira a demonstração de uma fatal invisibilidade. Outros
fotografam para ver melhor.
António Júlio Duarte, de quem se apresenta agora a primeira exposição e
o primeiro catálogo-livro, aos 30 anos, é um fotógrafo viajante, que
sabe que o exotismo das primeiras descobertas só se repete em versão
turística e que a mais recente fotografia de viagem, como aventura
iniciática e íntima, já se fixou nos tiques de estilo da sua própria
mitologia. Percorrer o mundo é também, necessariamente, viajar pela
história da fotografia, mas a invenção de maneiras diferentes de o ver
continua a ser possível para uns quantos, que foram sempre raros, mesmo
quando o mundo e a fotografia pareciam estar virgens.
Oriente/Ocidente não é, no sentido corrente, um livro de viagens. Não se percorrem aqui roteiros definidos, retratando paisagens, civilizações ou ambientes, embora as suas páginas mostrem (imagens de) regiões tão distantes como Macau, Singapura, China, Tailândia, Malásia, Paquistão e Sri Lanka. Outras fotografias, feitas na Inglaterra, Alemanha, República Checa ou em Portugal — e Açores —, interrompem a cada passo os itinerários orientais e vêm reforçar uma constante deslocalização das referências geográficas, desrealizando o real nos seus fantasmas, máscaras e sombras.
O que vemos, onde e para quê, são questões que não se instalam aqui no domínio da crença documentária, mas que se propõem à interpretação do objecto fotográfico. Em algumas dessas imagens não saberemos nunca o que se «mostra» (Portugal 1993, Portugal 1990) e outras simulam conter-se na mais óbvia e próxima objectividade, o que serão duas maneiras simétricas de afinar o olhar sobre o ténue conteúdo de realidade que na fotografia se persegue ou se escapa: a sedução de ver será também a de uma infindável interrogação sem resposta, «sobre» a superfície luminosa que pode ser verdade ou mentira, vestígio de um lugar e tempo imobilizado, com o poder da imagem indizível.
Nenhum discurso unitário sobre a humanidade e o mundo — uma teoria de identidades ou oposições — resulta desse trânsito incessante entre oriente e ocidente, mesmo que as marcas dos locais se dissolvam, por vezes, até à impossibilidade de situar as imagens em regiões alternativas. Só as legendas breves (que estão, aliás, ausentes na exposição) permitem, então, identificar o espaço genérico de um país, sem servirem de descrição ou de chave. Mas não é também de uma repetida visão do mesmo que se trata, de oriente a ocidente, nem de uma universal «poetização do trivial» ou de um jogo só formalista com os processos de composição da fotografia. A extrema riqueza dos valores da luz e da sombra ou das matérias superficiais, o rigor da linhas geométricas ou a indecisão dos gestos surpreendidos, constroiem o objecto fotográfico e são elementos estruturantes da sua possibilidade de sentido(s).
Se o mundo se globaliza no título escolhido, em duas metades unidas pela distância de um espaço, é apenas enquanto universo fragmentário, ou «puzzle» infindável de que cada imagem é uma peça isolada. E se Jorge Calado, o comissário deste projecto, escreve no prefácio que «este livro e exposição celebram a unidade da Família do Homem (e da bicharada), num globo não mais regido pela bússula do norte-sul ou leste-oeste», referindo assim o optimismo da famosa e polémica exposição de Edward Steichen (MoMA, 1955), será certamente porque no olhar de António Júlio Duarte não descobriremos já a divisão entre nós e os outros.
MUNDO IMAGINÁRIO
O trabalho do fotógrafo inventa o seu próprio território e itinerário, nas 54 imagens de formato quadrado (16,7 cm de lado, tanto no livro como nas provas expostas), com datas que vão de 1990 a 1994 (aliás, de 1994 a 1990, desordenadamente), e cada fotografia é sempre só a demonstração da evidência de que estamos perante uma imagem escolhida e construída: recortada e iluminada por um olhar que se serve de uma máquina, sumptuosamente impressa e inscrita numa série. O real observado pelo fotógrafo e o artifício da observação serão sempre para o espectador indissociáveis: o mundo reproduzido é a produção de um imaginário.
Na sequência das imagens do livro (um outro objecto, diferente da exposição) o «puzzle» estrutura-se de modo a suspender a esperada transparência das representações e a intensificar a possibilidade de interpretar cada um dos olhares organizados como visões, estabelecendo relações de continuidade e diferença, de rima e de intervalo, entre as páginas que se sucedem. Nesse reforço da visibilidade formal da composição como efeito de produção das pistas de leitura (é a fotografia que se vê e não a semelhança com outra coisa, anterior e distante) recusa-se a caracterização de um «tema», de uma informação, de um projecto exterior ao objecto fotográfico; a nomeação interrompe-se, muito para além das reduções fáceis como reconhecimento ou enigma, intenção ou ilusão.
Observem-se lentamente as correspondências formais e as associações de sentido estabelecidas pelas imagens de cada plano do livro: por exemplo, entre o ferro arqueado de uma cama abandonada no passeio, em Tailândia 1992, e o ferro em brasa trabalhado na oficina de Portugal 1993; entre as caras escondidas das duas crianças, pelas máscaras de um balão e um papagaio, em Macau 1990 e Inglaterra 1991; entre a simetria invertida dos gestos de cruzar as mãos sobre a cabeça, em Portugal 1994 e Tailândia 1990, com a figura frontal e recuada de uma velha camponesa vestida de negro diante de uma carcaça de porco e, na segunda imagem, um jovem oriental em primeiro plano, de costas nuas, junto de uma estátua de elefante. Ou, quase no final, depois de duas imagens de espaços desordenados, a relação entre o sistema de linhas paralelas traçado pelos carris e cabos eléctricos do caminho de ferro, o muro sobre o mar e a linha do horizonte, com um barco que parte, em Portugal 1993, e o paralelogramo de uma geometria pura, fechando um espaço de terra, em Inglaterra 1991.
Atente-se na sistemática interrupção das sequências ou capítulos do livro com as fotografias dos cães (Tailândia 1992, Portugal 1992, Portugal 1991), da sombra negra e esquemática ao último corpo bípede, entre outras peças de um bestiário que inclui ainda um galo de combate, um morcego gigante e uma vaca, na desarmante e inquestionável imagem final.
OLHOS E OLHARES
Desde a capa, a ordenação das primeiras fotografias alerta-nos, através de uma sequência de olhos, que se trata sempre de saber ver, de querer ver, de aceitar e interrogar o desconhecido — e não é por acaso que se sucedem os olhares inquietos das crianças, os olhos assustadores do monstro e o rosto de fantasia do actor.
As duas crianças de Paquistão 1994 interpelam o espectador com o seu olhar cruzado, emergindo de uma sombra que ocupa a base da imagem como um borrão informe, retirando-lhe a definição de um lugar inteligível; a seguir, o monstro oriental desenha-se numa parede gasta, destacado entre as manchas que o arabesco do bigode atravessa (Macau 1990); depois, no rosto maquilhado de um actor oriental que descansa fora de palco, os olhos pintados são uma promessa de espectáculo (Singapura 1992). No plano seguinte, em Tailândia 1990 e Inglaterra 1991, contrapõem-se em apenas duas imagens sintéticas as inumeráveis possibilidades da representação e do imaginário: um homem visto de costas, com um leque a esconder-lhe a cabeça, parece dançar diante do beijo cinematográfico de um grande telão ou cartaz, e a rua é o sonho de um palco ou ecrã; ao lado, a estranha imagem frontal e próxima de Margaret Tatcher, alterada por um foco de luz que lhe paira sobre os olhos e lhe prolonga a testa, lembra o retrato de Mao.
A seguir, ainda, duas imagens (Malásia 1992 e Macau 1990) são prováveis homenagens a Werner Bischoff e W. Eugene Smith, que moldaram as visões do Oriente. Citando dois protagonistas do fotojornalismo humanista, é significativo que as imagens não autorizem qualquer imediata homologia da mensagem sobre a dignidade e o sofrimento dos homens: o que se mostra, referindo, primeiro, uma dinâmica das formas que traduzia graficamente a ordem de uma cultura ancestral e, a seguir, um uso geométrico das luzes que criava a dimensão épica das situações, são apenas dois vulgares lugares de comércio. Mas as cestas oferecidas ao transeunte estão à boca de um palco fechado, definido pela exacta regularidade horizontal da cortina de estores, onde se enquadra a passagem serena de um corpo altivo, e, na segunda imagem, a mão que entra em campo estendendo uma nota define o eixo maior de um losango criado por linhas de luz e preenchido pelas ovais dos recipientes e das grelhas. São as últimas imagens de um primeiro bloco.
No prefácio, Jorge Calado diz que «fotografar bem é uma espécie de quadratura do círculo» e caracteriza António Júlio Duarte como «o fotógrafo do equilíbrio e da geometrização», que organizam e domesticam a anarquia urbana; fala da sedução exercida pelas texturas dos materiais — «a pedra corroída, a estratificação do bambu, a sedosidade da pede humana» — e aponta a presença das máscaras que adensam o mistério e também a perturbação que nasce da frontalidade directa de alguns personagens.
É indispensável, por fim, sublinhar a exemplaridade, permitida pelo subsídio da Fundação do Oriente, da produção da exposição e do livro pela Ether, mencionando a qualidade de iluminação e de impressão (Marca - Artes Gráficas, Porto). A excelência é possível.
(Exposição no Lagar de Azeite, Quinta do Marquês, em Oeiras, até dia 28)
NOTAS, 1995
ANTÓNIO JÚLIO DUARTE,
Lagar de Azeite, Quinta do Marquês, Oeiras, 6-5-95
Poderia falar-se de um novo fotógrafo se o seu trabalho não tivesse já merecido o prémio Kodak de 1990 e não se pudesse ver na Europália 91, seleccionado por António Sena. É antes o tempo de revelação das imagens que é terrivelmente lento. Primeira grande exposição e edição de A.J.D., «Oriente/Ocidente» é uma produção da Ether apoiada pela Fundação do Oriente, comissariada por Jorge Calado, que se inaugurou na quinta-feira. A um núcleo inicial de fotografias feitas em Macau vieram juntar-se outras de diferentes lugares, num projecto estruturado pelo cruzamento constante de sinais onde as diferenças geográficas se reconhecem e se esbatem na presença de uma mesma estranheza intraduzível. A viagem é aqui uma permanente disponibilidade da observação que não desvenda e congela o sentido dos lugares, mas antes se exerce como capacidade de surpresa diante dos corpos e dos olhares encontrados — e A.J.D. sabe olhar as pessoas como poucos. Conhecidas algumas provas e só rapidamente folheado o livro, recomenda-se a sua descoberta.
20-5-95
Um trabalho fotográfico desenvolvido desde 1990-91 surge a público numa exp. e num catálogo-livro, «Oriente Ocidente», de exemplar produção, apoiada pela Fundação do Oriente. Circulando entre dois mundos, que são por vezes indiscerníveis, A.J.D. ultrapassa os códigos da fotografia de viagem com um olhar original que se serve do preto e branco e do formato quadrado com um exacto domínio dos profundos constrastes de luz e uma impressão magnífica. O objecto fotográfico é aqui irredutível à referencialidade dos lugares ou dos objectos e também ao itinerário da intimidade autoral, suspendendo o sentido imediato das imagens para alargar o horizonte de surpresa e de interrogação oferecido ao observador, questionando o mundo e as imagens, entre a presença do caos e a geometrição ds formas, os fenómenos da luz e a presença dos corpos.
Arquivo Municipal de Fotografia (2), 07-10-95
«Oriente/Ocidente», um projecto de exposição e livro comissariado por Jorge Calado, com produção da Ether e já apresentado no espaço do Lagar de Azeite, em Oeiras, com o apoio da Fundação do Oriente, é uma selecção de fotografias realizadas desde 1990, de que já se falou mais longamente na «Revista» de 13-5-95. Circulando entre dois mundos, que são por vezes indiscerníveis, A.J.D. ultrapassa os códigos da fotografia de viagem com um olhar desperto para o mistério dos lugares, que se serve do preto e branco e do formato quadrado com um exacto domínio dos profundos constrastes de luz e com uma magnífica qualidade de impressão. O objecto fotográfico é aqui irredutível à referencialidade dos sítios ou dos objectos e também ao itinerário secreto de uma possível intimidade autoral, suspendendo-se o sentido imediato de cada prova para alargar o horizonte de surpresa e de interrogação oferecido ao observador, questionando o mundo e as suas imagens, entre a presença do caos e a geometrização das formas, os fenómenos da luz e a presença dos corpos.
21-10-95
«Oreiente-Ocidente» prolonga a grande tradição da fotografia de viagem, mas o fotógrafo circula entre Macau e os Açores, a Tailândia e a Inglaterra, sem procurar o exotismo, ou mesmo fazendo da diversidade dos lugares e dos tempos a celebração da unidade geográfica e humana do mundo. A exp., que se inaugurou em Oeiras, em Maio, bem como o catálogo-livro que a acompanha (ambos comissariados por Jorge Calado e com produção da Ether, contando com o apoio da Fundação do Oriente) ficam como acontecimentos decisivos de um ano fotográfico que conheceu também o projecto «Ist» de Augusto Alves da Silva. Entretanto, destaque-se a excelência da montagem, que constitui uma lição sobre o que é ver e expor fotografias: observem-se os alinhamentos temáticos (os animais, as crianças, os desportistas, etc) ou formais, sublinhando paralelismos gestuais, efeitos lumínicos, geometrizações dos espaços, enquanto outras imagens se agrupam para prestar homenagem a anteriores fotógrafos viajantes ou interrompem ritmicamente a sequências para suspender as leituras imeditamente referenciais.
28-10-95
«Oriente-Ocidente», em últimos dias. Uma exposição e um livro que marcam o ano fotográfico, fazendo ainda da viagem, do olhar sobre o mundo, a revelação de um modo único de ver.
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