"Lugares de passagem"
Expresso/Actual de 10-Julho-2004
Novas jornadas da itinerância de um fotógrafo entre o Oriente e o Ocidente. Documentos e narrativas de uma viagem autobiográfica
António Júlio Duarte
«We can’t go home again»
Módulo
De certo modo, António Júlio Duarte refaz "Oriente/Ocidente", exposição e livro que em 1995 o impuserem como um dos fotógrafos mais originais. As diferenças são inúmeras, mas a descoberta do Oriente e das suas culturas, o confronto ou diálogo com outros lugares a Ocidente, o sentido da viagem como partilha do mundo e itinerário autobiográfico estabelecem a continuidade profunda do olhar e a mesma interrogação inquieta. O caminho oriental do fotógrafo teve depois passagens monográficas pelo Japão, em "Peepshow", e por Macau, em "Lotus", com que consolidou essa ligação vital ao outro lado do mundo e experimentou a passagem à cor, para além de manter uma presença constante em muitos projectos colectivos e de encomenda.
«We can’t go home again» reúne 26 fotografias realizadas entre 2000 e 2003, no formato quadrado de sempre, em provas de 51 cm de lado, uma média dimensão que assegura a sua continuidade narrativa, à margem da moda dos quadros fotográficos. António Júlio Duarte percorre lugares tão diversos como Xangai e Pingyao, Istambul, Paris e Puteaux, Badajoz, regressando a Lisboa numa imagem única, que não por acaso é um interior doméstico e intimamente significativo, colocada no centro da montagem. O título e essa fotografia recentram os itinerários na interrogação do que se transforma com a experiência da distância e das diferenças do mundo, mas, se se sublinha a dimensão subjectiva da viagem, recusando a ilusão da neutralidade, a intimidade vivencial das imagens não deixa de as inscrever numa longa tradição de descoberta fotográfica do mundo, descrevendo lugares e realidades com subtil eficácia documental.
Não se regressa o mesmo da viagem e nunca se volta à mesma casa de partida, mas também parecem mudar os lugares de itinerância que se buscam. O Oriente é já outro em apenas dez anos de transformação do mundo e a China, que se tornou o novo centro e modelo, é o seu testemunho mais poderoso. O primeiro livro descobria uma intemporalidade profunda num presente povoado por antigos vestígios culturais que afirmavam a sua diferença face à homogeneização de uma cultura global. A exposição actual é menos marcada pela antinomia de civilizações do que pela circulação de influências e pela osmose dos traços do mundo. A cidade está mais presente na sua dimensão colectiva e aglutinadora, ao mesmo tempo que desaparece a pontuação alternativa que se fazia com a presença das crianças e dos animais, os cães em especial.
A grande metrópole (Xangai) que se divisa à distância numa linha de grandes blocos de arquitectura internacional pode ser um lugar qualquer. Os espelhos pendurados numa rua de Istambul, lugar de cruzamentos entre Oriente e Ocidente, reflectem um espaço estilhaçado em que circulam os corpos fragmentados de uma modernidade globalizada. São árvores metálicas que substituem uma promessa de jardim, lembrando as aranhas de Louise Bourgeois, como sugere um texto de Francisco Feio. Adiante, um espelho partido torna mais caótico o espaço à volta duma cadeira de barbeiro, a que o círculo bordado num lençol branco confere um misterioso vestígio de ordem. Num interior de hotel, varrido por uma melancólica mulher, alinham-se réplicas de pinturas ocidentais (La Vérité, de Jules Lefebvre, premiada no Salon de 1870, retratos mundanos, Manet). Um bonsai acompanha um toldo fechado, como uma saia, fazendo da natureza um vestígio decorativo.
Na cidade febril de dez milhões de habitantes, o olhar do viajante detém-se sobre o rapaz que parece dormir sentado à beira do passeio, numa pausa do trabalho de rua. Um outro descansa sobre a motorizada reluzente, num recolhimento precário; adiante, uma criança dorme inclinada sobre o balcão de uma loja chinesa. O sono pontua as fotografias de rua numa cidade que não dorme, e as figuras vistas de costas - a mulher do vestido vermelho que atravessa a noite, outra que telefona de uma cabina, o casal que se afasta no nevoeiro da madrugada - estabelecem outra sequência de figuras absorvidas sobre si mesmas, que se isolam do espectáculo urbano e se furtam ao olhar do espectador. Outras imagens - a refeição improvisada em Paris com um prato de ostras, o ambíguo personagem que nos encara com um olho só, a frase escrita na parede - contrapõem a fuga interior à narrativa que se desenvolve nas três outras paredes da galeria: «Le monde est plein de dégueullasses et de faignants moi je n’en fait pas parti!» Não é uma conclusão, a viagem tem de continuar. (até 31)
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