E para acabar bem
uma festa nos jardins do Centro Cultural Franco-Moçambicano, que parecem uma espécie mais animada de Gulbenkian no centro de Maputo (a Praça da Independência, com a catedral, a câmara, o jardim botânico ou Jardim Tunduru e a Casa de Ferro), embora a presença da língua francesa seja só uma boa intenção.
Num antigo hotel de estilo colonial, muito bem recuperado, há constantes exposições de artistas locais, espectáculos, colóquios, festas e outras actividades - parte da frenética agenda de Maputo tem aí a sua base, enquanto o Instituto Camões, gradeado no r/c de um prédio, é mais burocraticamente austero.
É agora a sede principal do 2º Dockanema, o festival de documentários que ía começar no dia 14 com forte presença portuguesa, via AporDOC (com os Lisboetas do Sérgio Tréfaut e outros), além do filme de Isabel Noronha sobre Malangatana e dos novos títulos de Licínio de Azevedo, em especial os Hóspedes da Noite, rodado no Grande Hotel da Beira - o suplemento de 16 páginas no semanário Savana é uma estimulante edição (Missanga, Ideias e Projectos).
E aí inaugurava a 13 uma loja de artesanato e afins, o Bazart, pretexto da festa. Para lá da música e de outras seduções muito tropicais - cuspidores de fogo, percussão tribal(?), e não só -, aí se podia conhecer ou encontrar toda a gente.
O Pedro Pimenta, produtor de cinema e director do Dockanema, pouco satisfeito com as dificuldades portuguesas, apesar da programação destacada.
A Paola Rolletta vinda de Roma, com a tal empresa de ideias e projecto Missanga (é dela o livro Capulanas e Lenços, Maputo 2004, em 2ª edição).
O Luís Basto, fotógrafo nascido em 1969, editado em 2004 nos Carnets de la création e em 2005 com Voyage au Mozambique, Maputo, Éditions du Garde-Temps, Paris - com as fotografias, a cores, sacrificadas a uma paginação de álbum turístico em prosa fatigante e empolada, tudo demasiado cauteloso.
O Aladino Jasse (das serigrafias em Lisboa e agora do vídeo em Maputo) e a Beatriz Costa, a festejar a abertura da sua loja. Artistas do Núcleo de Arte (o Alexandria) e do Muvart (Marcos Muthewue).
(Mas falhou o encontro com o eng. Álvaro Henriques, o grande coleccionador de Maputo. É uma das coisas que ficou para a próxima vez.)
o antigo Hotel Clube, hoje CCFM (postal )
A frenética agenda de Maputo, com acontecimentos diários sucessivos e sobrepostos, é uma das surpresas do viajante que não se vá encerrar nos ressorts onde estão os mesmos turistas de toda a parte - aqui mais sul-africanos brancos.
Vista do outro lado da baía, da Catende, a cidade lembra Nova Iorque - é um lugar comum -, com a elevação dos arranha-céus sobre a parte alta da cidade; de perto, os sinais da guerra estão ainda muito presentes - não os dos canhões, mas os buracos das ruas, o lixo, os prédios degradados, os pobres. Nada de muito diferente das nossas periferias pós-urbanas, mas transferido para o centro.
desde o restaurante Marisol, na Catembe
Os nomes da revolução mundial, nos seus vários episódios do séc. XX, permanecem em todas as ruas, mas vale a pena ver o conjunto de edifícios associados à embaixada da ex-URSS, junto às torres da Coop, para se ter uma ideia do que esteve em jogo, agora que a liberalização económica está a redistribuir aceleradamente novas diferenças de poder e de meios (de classe?).
Parece que havia antes as duas cidades do cimento e do caniço. Agora a cidade do cimento tem também ruas de terra e tem enclaves de barracas, às vezes assustadoramente impenetráveis (por exemplo junto à base dos chapas no "Museu" que serve o imenso liceu ex-Salazar, com um frequentadíssimo segundo turno até às 22h: a escolarização é um facto e são inúmeros os meninos e meninas que seguem com as suas fardas de estudantes). Entretanto a cidade do caniço deu lugar a muitas mais barracas ao longo de avenidas de quilómetros. Barracas coloridas - é acesa a guerra entre as campanhas dos telemóveis -, de um imenso bazar onde tudo se vende - as esculturas feitas de escapes de automóveis não serão arte, e as pinturas de parede que anunciam toda a espécie de produtos ilustam uma pop de pobres.
Mas a arte está na rua, em toda a parte - parece que é comum às zonas deprimidas do que se chamava 3º mundo. É certamente um expediente contra a miséria, que se tornará mais discreto e especializado, ou desaparecerá, com o desenvolvimento. Às tradicionais esculturas de madeira - e às novas versões pop de objectos em madeira leve (psikhelekedana, que já tem a sua literatura erudita) juntam-se por toda a parte onde circulem turistas (e brancos em geral) os brinquedos de arame ou de lata recortada (de que se apropriam os novos artistas conceptuais), as máscaras feitas em série ou talvez "autênticas", os quadros que multiplicam estilos modernos locais, por vezes seguindo os de artistas em voga, e os batiks. Tudo isso é o espaço da arte, sem fronteiras entre tradicional e popular, entre primitivo e moderno, original e múltiplo, falso e autêntico, bom e mau - e tudo se prolonga, sem barreiras nem sobressaltos, talvez com subtis distinções, nas exposições dos centros e institutos estrangeiros e também no Núcleo de Arte e no Museu. É assim sempre com toda a arte, como quis demonstrar Duchamp, mas há quem se esforce por separar de-graus essenciais e naturezas diferentes nesse continuum.
O Museu Nacional de Arte/Musart e o Muvart preocupam-se em propor escolhas e fazer experiências, pondo em causa a rigidez de um cânone que geria autoritariamente os primitivismos modernos, ocidentalizados ou não, tomados como estilos oficiais, e o segundo, movimento organizado em que predominam os professores do ensino artístico, foge à complacência com os formulários estabelecidos, procurando outras linguagens híbridas entre a tradição reciclada e programas de conceptualização.
Mucavele, S.T., 1995, 60 x 94 cm. Col Banco Comercial de Moçabique
O Núcleo de Arte, que foi branco nos anos 30/40 iniciais e ensinou depois a modernidade aos indígenas, e o indigenismo do estilo moçambicano de pintura a alguns deles, é uma espécie de SNBA popular, com reconhecimento oficial e autoridade artística delegada, onde se seguem um vasto espaço de galeria, as oficinas em laboração, de cerâmica e escultura, mais a cantina-esplanada. E há pessoal especializado para desengradar as telas e fazer os rolos de cartão para trazer de viagem - parece que dão muito trabalho por cá às lojas de molduras, e ainda bem, mas é altura de aparecerem as galerias comerciais que "disciplinem" a benevolência barata das embaixadas e a distribuição descontrolada.
Lá está todos os dias a pintar à secretária, de charuto constante, o grande Mucavele, original visionário com as suas paisagens monócromas, sempre disponível para lembrar a carreira internacional iniciada na África do Sul. A solução para classificar o que faz (montanhas e núvens, alguns espaços cultivados, a machamba, ou desertos inventados) é falar de ingenuidade, que se entenderá à vontade como elogio ou preconceito. Um grupo de obras bem escolhidas que o Museu Nacional de Arte apresenta e mais duas da colecção TDM mostram que a obra é irredutível e o caso é sério - na colecção da CGD em Lisboa também há pelo menos três pinturas (em cinco) de grande nível, vindas do episódio "Mais a Sul", barbaramente interrompido, estupidamente incompreendido. É, com Malangatana, um nome maior, se os que importam são os que se distinguem dos estilos escolares.
Outro artista do Núcleo é Titos Mabota, representado na colecção André Magnin-Piggozi (100% Africa no Guggenheim) e tb no África Remix.
Titos, Avião, 2001,
madeira, tela e bambu, 320x314x180cm (Africa Remix)
Voltando à cidade, há que referir a surpresa que é também uma imprensa muito crítica face ao governo, multiplicando acusações quanto ao quotidiano carente da população, a economia e o funcionamento da máquina do Estado, e em especial da justiça, agora em dias de substituição do procurador geral. Parece que há limites a respeitar quanto à origem das fortunas e à corrução, evitando nomes e factos, numa distância prudente face aos "ovos da serpente" - algumas mortes ficaram por punir. Na televisão, o interrogatório de um ministro (da Índústria, no caso) pode ser um bom espectáculo político, conduzido por velhos jornalistas que não fazem ou aparentam não fazer concessões (Savana e o oficial Notícias).
A programação dos institutos e centros culturais estrangeiros conduz a actualidade cultural, substituindo-se no caso das artes a um inexistente mercado galerístico independente, com efeitos certamente perversos, até porque a multiplicação das oportunidades não tem consequências de selecção ou consagração. Com a próxima chegada do instituto Cervantes o Camões terá concorrência de peso, mas o que parece previsível é a profissionalização de algum mercado de arte, sob as expectativas simultaneamente geradas quer pela certeza de que existem vários artistas com possibilidades de maior continuidade e reconhecimento quer pelo contexto de espectativas internacionais em torno dos artistas africanos em geral.
A cidade de Pancho Guedes (Fotos *L )
A cidade, aliás, é marcada por uma boa arquitectura moderna portuguesa - menos forçada ao português suave. Seria preciso fazer o roteiro dos prédios e casas do Pancho Guedes, com decorações murais algumas, e que pareceram bastante bem conservadas - o que é feito da retrospectiva que se anuncara no CCB para 2006? Há também paredes de António Quadros que lá terá passado duas décadas, de 64 a 84?, mas é em geral a arquitectura mais anónima que impõe a sua qualidade. E está a chegar a arquitectura de centro comercial, em pós-moderno de espectáculo, com inauguração por estes dias na zona baixa, a anunciar novos tempos de consumos fáceis a caminho dos barcos para Catembe. Outros tempos difíceis marcam-se com a serenidade bem ritmada da sede do Banco de Moçambique, ex-BNU, arquitectada por José Bastos e resistente ao tempo passado desde 65.
o antigo Banco Nacional Ultramarino, hoje Banco de Moçambique
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Painel gravado em pedra de Francisco Relógio (foto Círculo Artur Bual, Amadora)
A imponência moderna prolonga-se com escolhas de intervenção decorativa que não se praticariam com tal gosto na metrópole. Fora, o grande painel cerâmico de Querubim Lapa, fluente mas idêntico a outros; de fora para dentro, prologando-se a toda a largura interior do prédio, a parede gravada de Francisco Relógio que surpreende sempre quem não conhece mais do que o seu modo menor, de um tardo-neo-realismo lírico-panfletário repetitivo. Aqui tem um fôlego mexicano e há acerto de escala do desenho narrativo. Entretanto, as escadas interiores que sobem são revestidas por uma abstracção decorativa em pastilha multicolorida de Estrela Faria, que agora se vê bem datada e feliz. Nos andares acima parecem conservar-se maIs obras portuguesas de qualidade e tudo parece ter sido reunido num livro antigo de que ainda se diz terem sobrado exemplares. Talvez a grande escala do território e a distância de São Bento tenham permitido que o mesmo país (ou ilusão de país) tivesse por lá um outro fôlego.
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