Expresso / Actual de 10/3/2001
Macau, luzes e sombras
Dois fotógrafos interpretam Macau no final da administração portuguesa
ANTÓNIO JÚLIO DUARTE «Lotus»
PAULO NOZOLINO «Fim»
(Culturgest)
Dois fotógrafos olham para Macau antes da transferência da administração (20/12/1999). A convite da Fundação Oriente, mais do que por encomenda, que poderia supor um propósito ilustrativo ou de celebração orientada (intenções também dignas que têm outros canais de realização). Trabalharam livremente, em viagens sem imposições temáticas nem compromissos de qualquer complacência para com conveniências políticas ou a conflitualidade da mudança. Dois fotógrafos, Paulo Nozolino e António Júlio Duarte, com obras reconhecidas e itinerários separados por uma exacta distância de dez anos nas datas de nascimento (1955 e 1965, em Lisboa) e de aparição pública (à volta de 1980 e 1990).
O resultado de um projecto com seguros pressupostos é a apresentação de duas exposições de grande qualidade. Dois olhares distintos, mas não opostos, mostram o que pode ser a diversidade da representação fotográfica de um mesmo lugar.
Paulo Nozolino apresenta Fim, 13 fotografias a preto e branco, expostas em provas de grande formato, sem vidro, em condições de «instalação» que acentuam a condição narrativa da série, organizando o espaço e envolvendo o espectador no desenrolar de uma obra única, ao mesmo tempo poema e filme. Às condições mais habituais da exibição de fotografias substituem-se uma disposição espacial e uma construção em sequência que retomam a antiga tradição da pintura narrativa que a modernidade condenou, ao mesmo tempo que concorrem com o impacto dos «media» que exploram as virtualidades da imagem em movimento. É, neste caso, a disposição em friso de uma série de imagens fixas que atrai e determina o movimento do espectador.
Ao centro, 11 fotografias praticamente contíguas, envolvidas por um princípio e um fim mostrados isoladamente - a chegada por mar a Macau e um literal «fim» fotografado de uma edição de Clepsidra, de Camilo Pessanha. Com uma extrema concisão narrativa, cada imagem aponta um eventual personagem, isola uma cena de uma possível intriga ficcional, estabelece as marcas simbólicas de um itinerário que é percorrido pela presença da morte, com um ritmo e uma intensidade dramática que podem facilmente dizer-se alucinantes. Observem-se as cruzes repetidas, ritmando a sequência, o velho adormecido (?) na Gruta de Camões, os animais abatidos no matadouro, a flor de lótus no templo budista, marcando o centro da série com uma promessa de redenção, depois a prostituta de rua, a câmara ardente de um corpo estranhamente iluminado, a cidade em construção ou já em ruínas, através da grelha dos andaimes de bambu. E note-se a eficácia formal e simbólica das composições sistematicamente vincadas por um eixo vertical (vara, pilar, colunas de luz ou de sombra, esquina, etc.) cortando nas imagens iniciais a horizontalidade dos planos.
Macau é o cenário de um filme negro (encontrado e não encenado, o que é o milagre de alguma grande fotografia), recortado em imagens de extrema densidade visual (minuciosamente trabalhadas pelo fotógrafo nos seus valores de luz e sombra), escolhidas como equivalentes visuais de um universo habitado pela violência. Uma descida aos infernos que traduz a realidade e o imaginário do território e que é, também, um encontro com a dimensão ao mesmo tempo mais crítica e íntima do trabalho de Nozolino, apontada na frase incluída na montagem, «Por vezes, sentir-te-ás extremamente só, próximo de tudo e alheio a tudo (...)», retirada do texto do catálogo de Antoine Volodine.
Paulo Nozolino é um grande viajante, mas não conhecia Macau. Pelo contrário, António Júlio Duarte é um frequentador assíduo das rotas orientais e a estas se associou logo a sua afirmação com Oriente Ocidente, em 1995, numa edição da Fundação Oriente comissariada por Jorge Calado. Macau já surgia em fotografias de 1990, entre outros lugares da Europa à Tailândia e à China.
Exibe agora 22 fotografias a cores, de formato quadrado, 80 por 80 cm, expostas separadamente, embora elas se organizem informalmente em três núcleos no espaço da exposição e também no catálogo, de modo diverso. «Lotus», o título, refere a insígnia dada ao território pela nova administração, e o catálogo abre com uma citação de Tennyson (em The Lotus-eaters) a anteceder um texto de Francisco Feio sobre as fotografias.
No volume, as três imagens panorâmicas dos blocos residenciais que se erguem diante do mar ritmam sucessivas aproximações a um espaço urbano percorrido por apressados transeuntes e fragmentado por pormenores arquitectónicos ou por personagens e objectos encontrados. A montagem da exposição é (ainda) mais conseguida, ao assegurar o cruzamento dinâmico entre os diferentes núcleos de imagens e a sua inquieta confrontação temática. Particularmente forte é o intervalo do espaço central, com os dois quase-trípticos que de um lado aproximam um brinquedo abandonado, o cão ferido junto ao orifício circundado a vermelho (uma imagem de extrema violência) e o miúdo chinês sentado na rua, e, do lado oposto, a parede arruinada de mosaicos, o muro de betão que oculta o Casino de Lisboa, emparedando um dos símbolos reconhecíveis da cidade, e outra criança que brinca entre empenas de velhos prédios.
À volta, os grandes edifícios vistos ao longe e a passagem rápida dos transeuntes, abruptamente cortados pelo formato quadrado, assinalam e interrogam o contexto de mudança vivido pela cidade chinesa, entre marcas culturais arcaicas e sinais da globalização dos consumos. Estabelecendo uma diversidade veloz entre os motivos fotografados, a montagem ritmada adquire também um dimensão de instalação, ao mesmo tempo que se fazem reconhecer algumas fortíssimas imagens isoladas que transportam marcas e interesses recorrentes do autor.
Nomeadamente, a presença repetida do quadro dentro do quadro (ou melhor, a fotografia dentro da fotografia) e a apropriação de objectos encontrados, com eventuais referências a outras obras ou autores: os painéis publicitários integrados em duas imagens de transeuntes; uma acumulação de ferragens digna do melhor Arman, animada por um serralheiro em actividade; a densidade pictural e matérica do arruinado revestimento de mosaico; as enigmáticas volumetrias de arquitecturas desabitadas; a imagem final do objecto circular, como um fecho perfeito. Até 31 de Março
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