«Copiar liberta a imaginação»
EXPRESSO/Revista de 31 Maio 1997, por ocasião da retrospectiva no CCB
Entrevista realizada em parceria com Fernando Diogo
NAS MAGNÍFICAS condições de exposição do CCB, uma segunda retrospectiva de Paula Rego, vinda da Tate Gallery de Liverpool, apresenta a obra da pintora com particular insistência na produção mais recente. A um primeiro núcleo de pinturas-colagens dos anos 60 e às histórias desenhadas dos anos 80 sucedem-se as séries dos últimos trabalhos: a «Mulher-Cão» e as variações sobre filmes de Walt Disney, as «Avestruzes Dançarinas» de Fantasia, o Pinóquio e a Branca de Neve.
Na diferença das linguagens, que antes eram de significação mais oculta
e agora têm uma figuração mais explícita, há uma evolução que a mostra
segue passo a passo. Das obras iniciais que a pintora identifica como
de protesto político passou-se, nos últimos trabalhos, a um «discurso»
mais íntimo e também a uma intervenção de sentido feminista, que Paula
Rego refere como comentário sobre a condição feminina.
Na galeria que a exibe, a artista fala das suas obras e de si através
delas. Fala do que mudou quando foi pintar para a National Gallery, em
1990, e da necessidade actual de trabalhar sempre diante do modelo,
usando o pastel sobre suportes de grande formato. Agora, já é menos a
narração dos episódios contados em cada quadro que importa, mas «a
presença física» dos corpos que começou a «copiar» e o que nasce da
«sensualidade da observação». Quando «vêm ao de cima coisas que às
vezes não eram para vir».
EXPRESSO — Comecemos pelas obras mais recentes. Não acha que elas fazem entender melhor todo o seu trabalho?
PAULA REGO — Sim... Não sei se fazem entender melhor, mas chegam, de algum modo, ao fim do meu trabalho. Olhando para trás liga-se tudo, mas são mais simples, a história é contada de uma maneira mais simples, não é preciso tantos detalhes. É tudo contado através da posição das pessoas e é só uma pessoa. Mas isto não vai ficar por aqui.
EXP. — Quem são estas mulheres?
P.R. — É a Lila. Há várias mulheres — a série começa pela que eu chamo a Mulher-Cão, porque me apareceu uma criatura a rosnar, enfiada num canto e que parece que morde. Veio de uma história tradicional portuguesa, de uma mulher velha que come os bichos todos que tem em casa. Não era bem a «Mulher-cão», mas quando apareceu eu disse: «Bom, isto é a Mulher-cão» — e depois essa mulher levou-me a certas coisas do passado de que já não me lembrava e vieram as outras todas cá para fora.
EXP. — São mulheres que vêm de histórias, mas também são a condição da mulher...
P.R. — É muito a condição da mulher.
EXP. — Da mulher portuguesa?
P.R. — Ah, sim! Não sei bem, agora, como é a condição da mulher, porque não vivo em Portugal, mas no meu tempo, quando era nova, era de uma grande inferioridade, sem direitos de espécie nenhuma, e sofriam muito.
EXP. — E ali protestam?
P.R. — Ali sofrem.
EXP. — Só?
P.R. — Quer dizer, elas sofriam, mas também mordiam, já naquela altura. Tinham de se defender e defendiam-se da melhor maneira possível.
EXP. — Diz que é um ponto extremo da sua obra. Antes havia personagens que brincavam ou faziam «maldades»; agora existe uma gravidade maior?
P.R. — Pois é, mas eu ainda brinco muito. Nestas pinturas também se brinca, porque há uma cumplicidade muito grande entre mim e o modelo. Aquilo é feito com duas pessoas, sou eu que pinto e depois o modelo que tem a pose, e que vai mudando de pose. A Lila ajuda-me muito, na maneira como se põe e como se vai mexendo. O quadro está sempre, sempre a mudar, há uma metamorfose, há a figura que se está sempre a mudar: ela põe a mão para ali, a mão para aqui, etc. Também há partes cómicas e nós rimo-nos muito... aquela mulher fez porcarias na cama...
EXP. — A relação com o modelo não é a do retrato.
P.R. — Não são retratos. O retrato é a coisa mais difícil de fazer. Fiz um retrato da Germaine Greer, a feminista inglesa, foi uma encomenda da National Portrait Gallery, e fi-lo porque ela tem sido muito boa para mim e é uma mulher extraordinária. Quase que morria para fazer o retrato, porque não a podia pôr numa história, tinha de ser parecido, parecido, parecido. Ao passo que com a Lila vê-se que é ela mas às vezes fica a parecer outra pessoa, ela não se importa.
EXP. – Outros modelos são pessoas de família..., é a sua filha.
P.R. — Sim, a minha filha é A Noiva, na série da «Mulher-cão», e é a fada do Pinóquio.
EXP. — Os homens não estão presentes.
P.R. — Vão estar, vão estar.
EXP. — Aqui, nas obras recentes, não estão.
P.R. — Os homens estão fora do quadro. Num deles há um casaco que é do dono dela; estão no quadro por sugestão, mas não estão lá, não aparecem. Não cabiam.
EXP. — De vez em quando não tem espaço para meter os homens na sua pintura. Porquê?
P.R. — Pois é. É difícil, não é?
EXP. — Porque é que eles desapareceram?
P.R. — Mas eles desaparecem na vida. Morrem todos...
EXP. — Há sempre uma relação com a infância e também com o presente, com o que vai acontecendo, com o seu marido, os filhos...
P.R. — Pois com certeza. Estão todos lá, eles posam para mim... O meu marido não, que morreu, mas os meus filhos posam para mim. A minha filha mais velha tem mais que fazer e o meu filho só posou uma vez — faz cinema e agora não tem tempo para estas coisas. Mas a outra, como é actriz, muitas vezes tem tempo.
EXP. — Tornou-se raro os pintores trabalharem com modelo.
P.R. — Em Inglaterra há uma tradição de trabalhar com modelo: o Lucian Freud, o Kossoff, o Kitaj... muita gente trabalha com modelo.
EXP. — Os corpos têm agora uma presença física muito intensa. Às vezes tudo parece girar à volta de um joelho, de um ombro...
P.R. — É bom fazer isso, eu gosto muito. É difícil, mas dá-me um grande prazer.
EXP. — Dá mais corpo às figuras?
P.R. — Torna-as mais corpo. Um corpo mais corpo, exactamente. E sem ter a figura à frente não se pode inventar. Como é que a gente vai inventar um corpo? Não pode ser...
EXP. — Quer fazer parecido com o que as coisas são? Voltou a copiar...
P.R. — Sim, sim. Parecido com o que se chama real. Ah! Ah! Ah! Comecei a copiar, quer dizer, a olhar... o que nos liberta muito. O olhar para uma coisa liberta a imaginação. Parece que devia ser o contrário, mas não. A pessoa olha e então os olhos e a mão funcionam juntos. Depois há aquela coisa do impulso, o impulso é que vai inventando...
EXP. — Houve outra mudança, o pastel.
P.R. — O pastel foi por acaso. Fiz um desenho, o da menina a vomitar e o criado [não exposto], depois quis encher lá por dentro para ficar mais real e usei o pastel — fui aprendendo a fazer. Nunca tinha aprendido.
EXP. — Qual é a diferença em relação às tintas acrílicas?
P.R. — O pastel é uma extensão da nossa mão, como se estivéssemos a tocar naquilo que estamos a fazer. Tudo é feito com a mão, não há aquela coisa do pincel, que se dobra para trás e para diante, não se pode carregar, tem de ser um toque ligeiro. Com o pastel pode-se ser muito bruto e espetar, riscar: é como se fizesse não propriamente uma cópia da figura mas a coisa em si própria, como se estivesse a fazer um boneco de barro.
EXP. — Voltou a ser um trabalho muito manual, como com a tesoura nas colagens.
P.R. — Exactamente. Isto pega muito com as coisas antigas, com o recortar dos desenhos e o fazer no chão, o colar. Agora é com riscos, com o pastel. Alguns são grossos, é quase uma coisa fálica, outros são mais finos e consegue-se desenhar muito fininho; há pastéis mais rijos, mais moles, de toda a espécie. Os meus fazem uma grandessíssima pastelada, porque nem sei de que cor é que são, estão todos pretos lá num monte, pego num e tenho de fazer um risco na tela para ver de que cor é. Mas às vezes, nos dias bons, saltam-me à mão e vêm certos.
EXP. — Depois da «Mulher-cão» fez a série das «Avestruzes Dançarinas», para a exposição do centenário do cinema.
P.R. — As avestruzes vêm do filme Fantasia. Eu queria fazer mais, mas já não deu... Ainda fiz um fauno, que foi mostrado em Nova Iorque, e há também uma hipopótama que foi para a Florida.
EXP. — Essas mulheres já estão longe das histórias do Walt Disney, não acha?
P.R. — Também estão muito longe da «Mulher-cão», porque não funcionam individualmente. São criaturas em grupo e não têm propriamente uma história, estão ali, à beira-mar, de madrugada, acordam e espreguiçam-se, como no filme, e vão vivendo. Pertencem às mitologias — sei lá se pertencem, mas depois de as fazer pensei que talvez pertencessem às mitologias antigas.
EXP. — Depois do Jardim de Crivelli (que está no restaurante da National Gallery), o seu trabalho ligou-se à pintura antiga, aos santos e aos mitos. Foi um ponto de viragem?
P.R. — Pois é. Mas já havia santos — nos Cães de Barcelona já lá está o Lázaro, aquele santo com as feridas, e o cão a lamber. A seguir houve uma altura sem santos nenhuns, com os macacos e essas coisas todas, onde não entravam os santos. Depois começaram outra vez a aparecer, e foi na National Gallery...
EXP. — Por trabalhar no museu?
P.R. — Pois. Aquilo é tudo santos, não é!?
EXP. — Os artistas modernos tinham rompido com a arte dos museus.
P.R. — Então..., eu estava num museu e a única maneira como podia trabalhar era com aqueles quadros — através das histórias dos quadros, não de uma maneira plástica mas com as histórias — e fui procurá-las no livro, a «Lenda Áurea», que eles utilizavam muitas vezes para tirar as histórias para fazerem os bonecos.
EXP. — No Jardim de Crivelli as santas já são também mulheres comuns.
P.R. — Pois são. A Marta varre a casa, a outra anda com o porco. As santas todas são mulheres... e depois fazem milagres.
EXP. — Na «Mulher-cão», as mulheres não são santas mas são figuras heróicas.
P.R. — São figuras heróicas, tem toda a razão. São figuras heróicas. É isso mesmo.
EXP. — Já se disse que as «Avestruzes» parecem estar numa capela.
P.R. — O meu sonho era que me fizessem uma capela para as avestruzes, e aqui fizeram, foi o único sítio.
EXP. — Mas a Paula Rego não é religiosa...
P.R. — Até sou... A religião, no nosso país, está muito ligada aos nossos contos tradicionais, nos contos aparecem muitos santos e até São Pedro e os anjos mascaram-se para se meterem com as senhoras. É a tradição portuguesa, onde não aparecem tanto as fadas, mas aparecem santos e a Nossa Senhora muitas vezes.
EXP. — É por isso que diz que é religiosa?
P.R. — Há um sentido de..., como é que hei-de dizer? Nós às vezes precisamos de rezar quando estamos aflitos.
EXP. — A política desperta-lhe alguma emoção?
P.R. — A política?! A política feminina, feminista...
EXP. — Como é que viu as eleições britânicas?
P.R. — Fiquei muito contente por nos termos visto livre dos conservadores. Era uma desgraça, aquilo, nada funcionava como deve ser, as coisas práticas, os comboios e os hospitais... Privatizaram tudo e as coisas estavam um bocado confusas. Mas só voto, é o nosso dever, não estou mais envolvida do que isso. Não tenho tempo, a minha política é feita no «atelier».
EXP. — Já se disse que era a chefe de fila da segunda Escola de Londres.
P.R. — Não sou nada, não tenho nada a ver com a Escola de Londres...
EXP. — Mas a Escola existe?
P.R. — Dizem que sim. O Bacon, o Freud, o Kossoff, o Auerbach... são muito importantes e são pessoas que eu conheci... O Michael Andrews, andei na escola com ele, era muito amigo do meu marido, veio cá a Portugal e tudo. Tenho essas ligações. São uma série de pessoas que se juntam ali e pintam de uma maneira figurativa.
EXP. — É um espírito que resiste em Londres?
P.R. — Há uma grande tradição em Londres de pintar do modelo. Ensinam modelo na escola, hoje já não tanto, mas há uma grande tradição.
EXP. — É uma boa tradição?
P.R. — Ah!, eu acho que sim, que é uma boa tradição. Uma coisa que se pode ensinar é o desenho. Antigamente quando não havia outras coisas, as pessoas tinham mesmo que aprender a desenhar, era a única maneira de tirar a informação do que se via para o papel. E isso é muito bom, porque ajuda a pensar.
EXP. — Também teve alunos?
P.R. — Dava lições na minha antiga escola, a Slade, e às vezes ainda visito o Royal College of Art.
EXP. — Gostava de ensinar?
P.R. — Detesto, detesto. Não sei ensinar, não sou boa professora.
EXP. — O seu marido (Victor Willing) era um bom professor?
P.R. — O meu marido era uma pessoa extremamente inteligente, que sabia o que havia de dizer, e tinha uma grande vantagem: fazia as coisas muito claras para a gente perceber. Clarificava tudo. Mas ensinar o desenho não é bem isso — é ensinar a ver, um lado em relação a outro lado, e tudo é desenhado através de uma espécie de grelha que se tem na cabeça; nós temos um espécie de balanço na cabeça, quando se está a desenhar uma pessoa, e nem se sabe quem é que se está a desenhar.
EXP. — O que é quer dizer quando afirma que não é uma pintora moderna?
P.R. — O que eu faço não são instalações, nem... Uso métodos que são bastante tradicionais, faço o desenho, esquadro-o e depois ponho-o na tela e desenvolvo daí...
EXP. — Antes era moderna e agora não é?
P.R. — Quando fazia as colagens? Nessa altura, isso já se tinha feito também, eram um bocado os restos do surrealismo.
EXP. — Há 30 anos os assuntos não podiam ser tão explícitos...
P.R. — Em Portugal não, porque havia uma censura muito severa. Nos quadros, as coisas eram muito escondidas e quando foram expostos nas Belas-Artes ninguém percebeu o que aquilo era. Mas então tinham mais a ver com o governo — por exemplo, o Salazar a Vomitar a Pátria — e menos com as mulheres, era mais política e menos pessoal. O meu pai era extremamente anti-salazarista e educou-me assim. O meu avô também era.
EXP. — Como vive a fama enorme que agora tem em Londres?
P.R. — A gente não dá por essas coisas, não têm importância nenhuma. A Inglaterra é um país bom para se trabalhar. Eu vou trabalhar, mais nada — e desligo o telefone.
EXP. — Fala-se da sua obra em todo o lado...
P.R. — Falou-se muito por causa desta exposição da Tate, em Liverpool, porque foi lá muita gente. E as minhas obras aparecem muito nas capas dos livros porque os escritores gostam dos meus bonecos.
EXP. — Foi difícil chegar a este ponto? Foi muito demorado...
P.R. — 27 anos.
EXP. — Foram anos de marginalização?
P.R. — De marginalização, exactamente. Passaram 27 anos antes de ter uma exposição individual em Londres.
EXP. — Foi mais difícil por ser mulher?
P.R. — Não... Foi mais difícil por fazer aquilo que eu fazia, que não estava na moda.
EXP. — Os pintores jovens tinham mais dificuldades que agora?
P.R. — Sim, talvez. Era mais difícil para os artistas. Ninguém esperava fazer dinheiro com aquilo que pintava. Saía-se da escola da arte e se se tivesse sorte tinha-se uma exposição...
EXP. — Mas essa marginalidade permitiu-lhe ir mudando a sua obra.
P.R. — Pois está claro. A fama quando se é muito jovem é terrível, é um peso enorme. Deve ser horrível.
EXP. — A seguir, fica-se sempre a fazer a mesma coisa.
P.R. — Se calhar fica. Mas nem toda a gente...
EXP. — Não gostava de ter uma maneira de fazer que depois se pode repetir? É mais fácil.
P.R. — Eu destestava. É obsceno. É obsceno a pessoa fazer coisas que se parecem com aquilo que se faz. Quando se parece com uma coisa que a gente já fez é preciso deitar fora, acho eu.
EXP. — No princípio dos anos 80, quando abandonou as tesouras e as colagem, havia um ambiente favorável à pintura. Foi importante esse «New Spirit in Painting»?
P.R. — Exacto. Foi o que me safou, senão ainda não tinha arranjado nada. Aconteceu na altura em que eu comecei a fazer os macacos e então, «prup», apanhei a onda, foi o que me valeu...
EXP. — Ou a onda apanhou-a a si...
P.R. — As duas coisas, um bocado.
EXP. — Até a integraram na «transvaguarda». O que era isso?
P.R. — Sei lá! Era uma coisa de um livro, não sei o que isso é.
EXP. — Sentiu-se a fazer parte de um conjunto de artistas, de um acontecimento?
P.R. — Não fazia parte de nada. Nunca senti que era parte de acontecimento nenhum.
EXP. — Mas sente proximidades em relação a outros artistas?
P.R. — Não, nenhumas. Só com o Bordalo Pinheiro. Se tenho alguma coisa em comum com alguém, é com o Bordalo Pinheiro. É português e foi ceramista e um grande desenhador. O resto não. Não sinto nada em comum, nem com o Bacon nem com o Freud — não sou capaz de fazer aquilo que o Freud faz, tomara eu... Gostava de saber pintar assim, mas não sou capaz... Mas a história dele também é diferente.
EXP. — Outra aproximação que se faz é com o Balthus...
P.R. — Ah!... Não! Gosto mais do irmão dele [Pierre Klossovski].
EXP. — No Balthus é sempre um olhar de homem sobre as mulheres?
P.R. — Pois. É um bocado pedante, aquilo tudo, aquelas mulheres... O Balthus é um bom pintor, mas é um tradicionalista e faz aquilo tudo às escondidas... Não sei, eu gosto, acho que é um bom pintor, mas enjoa-me.
EXP. — E se chamarem tradicionalista à sua pintura figurativa, discorda?
P.R. — As histórias que eu conto não são... A maneira de fazer talvez seja tradicionalista... e nem é, porque nunca ninguém fez pastéis assim tão grandes e com tanto risco. Aquilo é uma porcaria, tudo mal feito... O resultado não é tradicionalista, são histórias diferentes, acho eu. Sempre fui uma pintora figurativa, as coisas antigas também são histórias, mas estão recortadas, os bichos estão todos recortados. Tem que se ter um assunto para se pintar. Eu ponho uma jarra à minha frente mas tem de ser uma jarra especial, que pertenceu à minha tia, etc., senão não sou capaz de a fazer. Tenho de ter uma relação com as coisas, não serve uma coisa qualquer.
EXP. — Sente alguma afinidade com a fotografia ou com o cinema?
P.R. — Nada. Mas ao cinema gosto de ir. Gostava, agora não tenho tempo, ou não me interessa tanto. Mas vi no outro dia um filme muito bonito, de que gostei muito, muito. Chamava-se Breaking the Waves (Ondas de Paixão) e era uma coisa extraordinária, a história de uma espécie de santa que também era milagrosa. Era espantoso, emocionou-me imenso. Gosto do cinema assim. Mas não vou ver o Star Wars, não tenho paciência. Gosto muito do Buñuel, admiro-o muito.
EXP. — Nunca se cansa de pintar?
P.R. — Eu não! Eu não sei o que hei-de fazer senão pintar, faz-me falta pintar, é o hábito de anos, e agora ainda mais, com o pastel.
EXP. — Trabalha todos os dias? É um ofício?
P.R. — Um ofício?! Não é um emprego. Mas é muito difícil, e é bom ser difícil, para puxarmos por nós próprios. Há coisas que não se sabe que se é capaz de fazer sem se tentar.
EXP. — É compulsivo?
P.R. — Sim. Estou desejosa todas as manhãs de ir para o «atelier», para continuar, para acabar e ver como é a seguir, e há coisas que levam muito tempo. São horas e horas e horas que eu passo no «atelier». Vou para lá às 9 e meia, dez horas, até tarde... às 8, às vezes, ainda estou lá com a Lila. Se eu pudesse ainda fazia mais, enquanto há luz do dia. Depois estou muito cansada e não me apetece ir ao cinema. Aquilo cansa muito. É muito difícil de fazer e eu fico estafada, parece que me tiram cá de dentro uma fatia.
EXP. — No seu trabalho dos últimos anos regressa a coisas que pareciam abandonadas. Primeiro a perspectiva, depois a sombra...
P.R. — Sim, sim. A sombra... e depois o corpo, como é que se faz? Vejo as coisas à minha frente e não sei traduzir para o papel. É muito difícil, mas é fascinante.
EXP. — Foi preciso reaprender?
P.R. — Sim, fui puxando, puxando por mim, para ver o que era capaz de fazer. O modelo chega, senta-se e eu estou ali, olho para a Lila à minha frente, com as mãos assim. Como é que eu vou fazer? Não sei... Depois vou começando a desenhar: um braço por cima do outro, a veia, depois até que ponto é que vai o punho, até à camisa, e depois há a linha, a linha escura que divide o punho da camisa, depois a camisa abre para cima um bocadinho até ao casaco e mete por ali dentro — é assim...
EXP. — Mas quando está a pintar não faz ficção do que está a ver?
P.R. — Não, não! Não há nada, nada de ficção! Não é nada ficção. É a sensualidade da observação — é uma coisa sensual, através dos olhos, e que depois a mão apanha, que a mão faz e copia. No copiar há um encanto... E depois, no fim é que se apanha a história, mas às vezes não sei que história é. Digo assim à Lila: «Lila, eu não sei o que isto é...» «Dona Paula — diz ela, tão querida... —, quando acabar já sabe; quando puser os pés já sabe o que é.» Mas é essa coisa da observação, de acertar, do conseguir acertar, como isto dobra aqui, como faz uma dobra mais por cima, tudo isso é que é fabuloso.
EXP. — Depois, às vezes, há várias histórias em cada quadro.
P.R. — Sim, há muitas histórias...
EXP. — É importante que sejam histórias?
P.R. — Sim. Para começar, há um enredo. Há uma história... Mas o fazer é que importa. O fazer é que me interessa. É assim: começo com uma ideia e ponho o modelo naquela posição; ao ir fazendo vai às vezes mudando o conteúdo da história, já não é bem a mesma coisa, porque vou aprendendo no que vejo. No que se vê sai tudo cá para fora. A observação liberta coisas que às vezes se tem escondido e a gente trai-se constantemente, porque vêm ao de cima coisas que não eram para vir.
EXP. — Essa posição em que põe o modelo é uma questão estética, só?
P.R. — Não, não, porque é a história... Por exemplo, a mulher-cão que está ali a lamber-se, está-se a preparar... Eu digo: «Lila, ponha-se assim...» E vou fazendo, mas se se virem os desenhos nota-se que às vezes começa de uma maneira diferente e ela põe-se noutra posição. Começo a fazer e depois vejo que não é assim, há um bocadinho de calça que mostro... Depois, no fim, é que acabo a história. Tenho uma ideia — quero pô-la a lamber-se toda torcida, não é verdade? —, mas depois, quando acabo, não é só isso, é outras coisas também, entra lá muita coisa.
EXP. — Onde vai buscar essas histórias?
P.R. — As lembranças? Às vezes são coisas que aconteceram, muitas vezes são recordações minhas de coisas pessoais, outras são coisas que vêm de contos tradicionais portugueses.
EXP. — Mas é a presença física que importa nas últimas obras...
P.R. — A presença física e a sensualidade do olhar...
EXP. — É como um corpo-a-corpo com o modelo...
P.R. — Um corpo-a-corpo, sim, sim. É o corpo-a-corpo.
EXP. — É ainda uma forma de prosseguir o que dizia serem os seus temas favoritos, os jogos de poder, o domínio e as hierarquias? São as relações entre as pessoas?
P.R. — Sim. Mas eu não estou a mandar nela, porque ela também me diz o que eu hei-de fazer.
EXP. — O modelo ou a pintura?
P.R. — O modelo é que diz também..., e depois a pintura. A Lila é cúmplice minha, eu só posso dizer certas coisas através dela e do corpo dela, não sou capaz de outra maneira, não vou fazer o meu corpo. Detesto.
EXP. — E poderiam ser pessoas desconhecidas?
P.R. — Ah!, isso não pode ser. Não gosto nada. Não estou à vontade.
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