EXPRESSO, Cartaz, 6 Nov. 99, pp. 22-23
"De viagem"
Quatro fotógrafos à volta do mundo, expostos em Lisboa e Porto
JOSÉ MANUEL RODRIGUES, «Chorar por Água», Arquivo Fotográfico de Lisboa
PAULO CATRICA, "Liceus de Portugal", Biblioteca Nacional
ANTÓNIO JÚLIO DUARTE, "Peep Show", Cadeia da Relação, Porto, e "Espaços de Sedução", Silo, NorteShoping, Senhora da Hora
AUGUSTO ALVES DA SILVA, "Fazer Tempo", Cadeia da Relação
OS FOTÓGRAFOS continuam a viajar à volta do mundo, apesar de se dizer que não já há lugares por descobrir. A viagem é um destino pessoal e um estado interior, por vezes uma retórica fotográfica, ou pode ser uma condição para afinar o olhar e manter um estado de alerta perante o mundo e os outros. José Manuel Rodrigues percorreu as ilhas de Cabo Verde, António Júlio Duarte visitou o Japão, Augusto Alves da Silva circula por toda a parte sem referenciar o mapa da viagem e mostrando como todos os lugares podem ser iguais, Paulo Catrica deu a volta ao país para fazer um inventário de liceus.
José Manuel Rodrigues, «Chorar por Água», Cabo Verde, 1997, Brava
A conjunção das exposições traduz uma situação mais favorável à produção fotográfica, com o pólo lisboeta do Arquivo Fotográfico, o Centro Português de Fotografia, a Norte, e a intervenção crescente de diversos patrocinadores, mas, se os patrocínios são a condição da fotografia (veja-se a história americana), esta não se move sem fotógrafos. Eles existem. «Chorar por Água», de José M. Rodrigues, mostra 76 fotografias realizadas em Cabo Verde em 97, com uma bolsa do Centro Nacional de Cultura, quase todas inéditas, embora algumas tivessem surgido em «À Prova d'Água» e na retrospectiva «Ofertório» produzida pela Culturgest. Ganham agora a dimensão de um imenso testemunho apaixonado sobre o arquipélago, retrato ao mesmo tempo fascinado e dorido de um paraíso agreste, feito de solo ressequido e mar à volta, no mistério de uma celebração da natureza e da perfeição das coisas, mesmo se a terra é ingrata e o cenário desolador.
Num belo texto de prefácio ao catálogo, o fotógrafo enuncia a sua arte poética: «Parti para Cabo Verde com a mesma disposição que o papel branco sente, quando se deita sob o ampliador: deixar-me impressionar pela luz e por toda a sua aura». A recusa de qualquer outro programa («conceptual»?) assegura-lhe a imensa disponibilidade perante o que só ele sabe ver – «imagens deslumbrantes e inexplicáveis, isto é, sem nome real». Ilha a ilha, visitadas ao longo de um mês, as fotografias percorrem centros urbanos, portos e vestígios do império, alguns interiores, por toda a parte o chão árido, os tanques abertos para recolher a chuva esperada, a areia preta do Fogo, «as árvores raquíticas que escalavam timidamente os céus, ao longo de anos sem água», palmeiras e arbustos a recordar o deserto caótico de Friedlander, a vizinhança constante do mar e às vezes uma ilha próxima adivinhada entre nuvens, a terra e a gente, nos retratos frontais, feitos com a pose cúmplice dos modelos, e os olhares das crianças.
A mostra estende-se pelas duas galerias do Arquivo, em provas de dimensões variáveis (12x16 a 38x46,5 cm), mostrando como a escala que constrói a imagem, na relação dos corpos com a paisagem, ou confundindo dimensões e distâncias, não decorre da ampliação inútil dos formatos. Em grupos de geometria variável, ordenam-se sequências temáticas e brinca-se com correspondências e oposições formais ou com a sugestão de continuidades entre enquadramentos. Concentram-se em pequenos núcleos que ora agrupam paisagem de montanha ora apontam a importância que o peixe tem para os ilhéus, adiante fazem referência à musica («é na música que o corpo sofre a paisagem e a verte numa liquidez redescoberta por pura magia e encanto»), para depois mostrarem as encostas minuciosamente escavadas em socalcos semeados, aguardando a chuva, em Santo Antão, e, no final, a galeria dos retratos, sempre altivos ainda que marcados pela pobreza e a adversidade. A acompanhar a mostra (até dia 27), fica a edição de um catálogo magnificamente impresso por António Coelho Dias S.A.
José Manuel Rodrigues, «Chorar por Água», ilha do Fogo
Documental é também o trabalho de Paulo Catrica, «Liceus de Portugal», encomenda do Instituto Histórico da Educação (entidade criada em 98 para conservar e estudar a memória das instituições educativas). Expõem-se (até dia 30) 33 imagens a preto e branco num alinhamento que começa por sugerir o levantamento de um único edifício, percorrendo instalações e salas de aula, mas logo se desdobrar num «puzzle» onde se reconhecem difersass arquitecturas, tempos e marcações ideológicas ou políticas de ensino.
Como em Periferias – exposição e livro do CPF – de 98, sobre as imediações suburbanas do Porto, Catrica não usa a disciplina da «Nova Topografia» (de Baltz e Basilico) como um estilo ou pose artística, nem se entrincheira em qualquer rigidez das regras de composição, e a sistemática ausência de habitantes é uma suspensão do tempo que torna mais visíveis as marcas acumuladas do trânsito humano. Variável na sua geometrização frontal ou oblíqua, fechada pelo chão e o tecto, a imagem recorta com rigorosa neutralidade crítica um espaço destituído de qualquer centro ou de sinais privilegiados, onde todos os elementos são igualmente significantes. O documento também é, assim, uma leitura do estado do mundo. Editado um desdobrável, aguarda-se a publicação de um livro com textos de António Nóvoa.
Passando ao Porto, encontramos na Cadeia da Relação (até dia 28) um duplo programa em que intervêm Augusto Alves da Silva e António Júlio Duarte, tendo este uma outra exposição no recém-inaugurado «Silo - Espaço Cultural» do NorteShoping.
«Peep Show», fotografias do Japão, prossegue o trabalho mostrado em Oriente/Ocidente, de 1995, e é já a exploração de outras direcções. A. J. Duarte apresenta três séries de imagens, ou mesmo duas exposições associadas: uma com fotografias a preto e branco, de pequeno formato quadrado (16 cm de lado, excessivamente dispersas no espaço de duas enxovias-galerias), a outra constituída por dípticos a cores, em fotocópia, precedida de uma estranha sequência onde é visível (nem sempre) a imagem circular de uma paisagem, centrada num quadrado negro: ilhas vistas num miradouro frente a Hiroshima, através de tubos de metal, desfocadas ou invisíveis ao sabor do acaso mecânico.
A primeira série prolonga o gosto pela fotografia de rua, na exploração ou deriva por um diferente universo cultural, disponível para os encontros fortuitos, construindo um itinerário referencial mas desviando-se dos estereótipos que lhe são atribuídos, frustrando as expectativas do reconhecimento. Menos geometricamente ordenadas, mais sombrias e também mais favoráveis ao humor, exploram os «objets trouvés», cartazes, ecrãs, bandeiras e graffitis como imagens dentro da imagem, por exemplo nas paredes pintadas de uma área ocupadas por «homeless» ou nas fotografias de Araki ironicamente comentadas por um escultura de pedra e formigas artificiais. A passagem aos dípticos e à cor prolonga o jogo poético por outras vias de exploração da banalidade das imagens e de associação ocasional.
No «Silo» apresentam-se 15 fotografias a cor de grande formato sob o título «Espaços de Sedução», feitas durante a montagem do centro comercial, num programa a cargo do CPF (que de futuro será partilhado com Serralves). É ainda outra direcção de trabalho, cumprida com eficácia como uma entrada nos bastidores do território do consumo, identificado pela multiplicação dos objectos e a velocidade dos figurantes, todos recortados com dureza sob as cores cruas do flash.
A montagem é dificultada pelas condições da galeria, um exercício arquitectónico que se quis valorizar como objecto de exposição em si mesmo (o interior cilíndrico do parque de estacionamento, em tijolo, projecto de Eduardo Souto Moura) que se sobrepõe ao uso expositivo. Também é curiosa a designação «Espaço Cultural», que melhor abrangeria todo o templo consagrado à cultura mediática, ao lazer e ao consumo. («Os Centros comerciais são o último espaço público que restou da Modernidade, desde que a comunicação social substituiu os espaços de convivência pela unilateralidade dos "Media"», escreve-se com destaque num texto de Maria do Carmo Serén, no boletim «Silo». O espaço público burguês e liberal, o centro urbano aberto a todos – embora decerto sujeito a práticas de exclusão social –, deu lugar neste pós-moderno fim do século aos espaços fechados dos centros comerciais, que rompem com o projecto moderno do «domínio público» para condicionarem o consumo sob formas precisas de segregação e controle – leia-se Architecture after Modernism de Diane Ghirardo, ed. Thames and Hudson).
António Júlio Duarte, série «Peep Show»
O outro programa da Relação exibe Fazer Tempo, de Augusto Alves da Silva, vídeo-instalação com projecção simultânea em três grandes ecrãs, dispostos lado a lado na mesma parede, com duração de 58 min. em banda contínua, sem princípio nem fim. São imagens em movimento, em sequências que quase sempre se repetem nos diferentes ecrãs, ritmando o tempo e condicionando o fluxo do espectáculo, acompanhadas pelos respectivos sons ambientes (sobrepostos, cacofónicos, em geral estridentes), às quais os espectadores dedicarão diferentes tempos de observação, vendo-as brevemente como justaposição de imagens banais, recusando-as como uma situação incómoda, ou deixando-se invadir por uma expectativa ou um fascínio hipnótico que o fará demorar longamente, mas que nunca se resolverá num sentido explicativo, ficcional ou documental.
As sequências e os seus diversos lugares (dos elevadores de um centro comercial em Lisboa a um espectáculo em Las Vegas) não comportam referências localizáveis, igualizando todos os espaços urbanos, nem se impõem por qualquer estranheza ou estímulo particular (artístico, emocional, etc). Muitas das imagens poderiam ter sido captadas por câmaras de vigilância, e outras perseguem ou recortam corpos em movimento, em geral femininos, pondo à prova o lugar e a condição do espectador (que olha sem ser visto), num espaço-tempo desrealizado onde se exercita o fascínio da imagem fílmica e a obsessão voyeurística, questionando o mecanismodo desejo e o excesso de visão.
Paulo Catrica, «Sala 2.06, Liceu Sá de Miranda, Braga (1921), 13.05.99»
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