...a propósito da Geração de 45 e do Neo-Realismo, que então ainda não existia de facto nas artes plásticas, enquanto movimento (pelo menos)
in Expresso-Cartaz, 9/11/2002, pág. 40-41
"60 anos antes"
A primeira manifestação pública dos artistas da terceira geração moderna decorreu em 1942, num quarto da Rua das Flores
Não se conhecem a data nem o lugar exactos, mas passam por estes dias 60 anos desde que surgiram a público alguns dos nomes mais marcantes da terceira geração da arte moderna em Portugal, aquela que se iria afirmar na segunda metade da década de 40, quase sempre associada aos movimentos neo-realista e surrealista, bem como ao segundo surto abstraccionista, após a fugaz experiência de Amadeo. Tratou-se apenas de uma exposição improvisada no quarto alugado, numa casa da Rua das Flores, para servir de atelier comum a alguns ex-alunos da Escola de Artes Decorativas António Arroio, os mais novos com 16 e 17 anos, quase todos recém-inscritos na Escola de Belas-Artes de Lisboa.
Não terá ficado registo na Imprensa da época, não se fez catálogo ou manifesto, nem, pelo que se sabe, cobertura fotográfica. Não foi um momento de viragem da arte nacional, nem se tratou da intervenção programática de um grupo organizado, mas o acontecimento marca retrospectivamente uma nova afirmação geracional e o início de algumas carreiras que a breve prazo iriam alcançar notoriedade. Evocar a efeméride é também a oportunidade de corrigir as referências feitas à exposição na generalidade das histórias e cronologias, quase sempre a atrasando para 1943, e de contrariar afirmações recentes que apareceram a valorizá-la como uma «atitude irreverente de afronta ao regime», já que as paredes teriam sido integralmente forradas com folhas do jornal oficioso do regime, o «Diário da Manhã». É uma fantasiosa memória oposicionista e mais um passo numa historiografia que prefere fazer-se com mitos.
Participaram na mostra Fernando Azevedo, Júlio Pomar, Marcelino Vespeira, José Maria Gomes Pereira (que foi depois arquitecto e abandonou a pintura) e Pedro Oom (o único que não frequentava Belas-Artes). Na pacata Lisboa dos anos da Guerra, o acontecimento atraiu as figuras que frequentavam A Brasileira, havendo testemunhos de visitas de Almada Negreiros e António Dacosta, João Couto, director do Museu de Arte Antiga, Diogo de Macedo, que pouco depois iria dirigir o de Arte Contemporânea, Reynaldo dos Santos, presidente da Academia Nacional de Belas Artes, Luís Reis Santos e Mário Chicó, ou ainda, noutras memórias, Eduardo Viana, Bernardo Marques e Mário Novaes. Todo um desfile que desmente ideias feitas sobre antigas resistências à novidade.
As poucas obras que se conhecem são naturalmente só indicativas de um tempo de aprendizagem e busca. Ao que se sabe, a única vendida fora dos círculos de amigos e parentes foi adquirida por Almada a Pomar e apresentada por aquele ao júri da 7ª Exposição de Arte Moderna do Secretariado da Propaganda Nacional, que se inaugurou em Dezembro (foi o nº 19 do catálogo, Pintura, mas o autor designa-a como Os Saltimbancos). O crítico da «Seara Nova», Adriano de Gusmão, escreveu que a obrinha «fez sensação neste salão», onde as presenças surrealistas de António Pedro e Dacosta enfrentavam os gostos mais conservadores, entre os modernos apadrinhados por António Ferro. Depois, a tal Pintura emprestada por Almada, certamente nunca reclamada, perder-se-ia nos depósitos do futuro SNI, com uma assinatura (Júlio) que deixou de ser identificada ou se prestava a confusões.
Três anos mais tarde, em Dezembro de 45, também na «Seara Nova», Mário Dionísio recordou a exposição da Rua das Flores falando dos «cartões pitorescamente pregados com 'punaises' na parede recoberta de papéis de jornal», e acrescentava: «Era pitoresco, ousado e simpático, embora se não pudesse concluir imediatamente onde começava a autêntica impossibilidade de expor de modo mais conformista e onde acabava certo gosto secreto de 'épater', herdado em cheio da velha Escola de Paris.» A versão com o «Diário da Manhã» surgiu numa última entrevista de Vespeira ao «Jornal de Letras» e foi registada no catálogo da sua retrospectiva, em 2000, voltando a ser repetida por ocasião da morte de Fernando Azevedo. De facto, para tapar as velhas paredes usaram-se os jornais correntes, trazidos das casas de família; em plena II Guerra, faltava aos jovens artistas dinheiro para telas e tintas, quanto mais para comprar exemplares bastantes de um tal diário, se a ideia tivesse sentido à época. Entretanto, também é a data de 1943 que figura naquele catálogos de Vespeira e no dedicado ao surrealismo em 2001.
Integrando a exposição no seu tempo, pode recordar-se que já tinham surgido entre Março e Junho de 1942, no quinzenário «Horizonte», editado pela Associação de Estudantes da Faculdade de Letras e dirigido por Joel Serrão, apelos a uma exposição de jovens artistas à margem dos circuitos oficiais. Por outro lado, uma fotografia de 1941 dá conta de uma exposição (ou talvez só projecto de exposição) que reuniu na António Arroio obras dos mesmos jovens, mas com Fernando José Francisco em vez de Pedro Oom.
À aparição lisboeta dos artistas da 3ª geração seguir-se-ia a curta distância (descontando o caso particular de Júlio Resende, um pouco mais velho) o arranque das Exposições Independentes no Porto, a primeira das quais decorreu em Abril de 43, como iniciativa de alunos da respectiva Escola de Belas-Artes. Na 2ª Independente, em Fevereiro de 44, aparece Fernando Lanhas, que se tornaria a partir de então o animador de uma série prolongada até 1950.
A iniciativa no campo das artes plásticas passava para o Norte, beneficiando da perseguição movida por um professor da ESBAL, o famoso Cunha Bruto, aos alunos que vinham da António Arroio e não dos liceus. Forçados a transferirem-se para o Porto, Gomes Pereira participa já na 2ª Exposição Independente e Pomar está presente na 3ª, em Dezembro do mesmo ano, no salão do Coliseu. Em versão seleccionada, esta mostra veio a Lisboa em Maio de 45, ao Instituto Superior Técnico, revelando uma das primeiras abstracções de Lanhas (Violino ou 02-44). Entretanto, já o grupo da exposição de 1942 se tinha voltado a juntar nas páginas semanais do suplemento «Arte» do diário «A Tarde», do Porto, onde têm lugar, no novo clima político do fim da II Guerra, as primeiras defesas escritas do neo-realismo em pintura. Aí escreveram, além de Pomar, que dirigia o suplemento, Vespeira e Pedro Oom, mais Fernando José Francisco, Mário Cesariny e José Leonel Rodrigues, todos eles vindos da António Arroio, e outros como Victor Palla, Júlio Gesta, Alfredo Ângelo de Magalhães e Manuel de Azevedo. A partir daí acelera-se o ritmo dos acontecimentos, desenham-se as primeiras rupturas estéticas e, ainda que as esperanças políticas viessem a ser travadas, o panorama artístico ia mudar drasticamente.
foto:
«A Guerra» (1942), pintura de Júlio Pomar exposta no atelier da Rua das Flores
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