Publicado no Expresso- Actual de 24/09/05, p. 42-43,
a propósito da inauguração da exp. sobre as Exposições Gerais de Artes Plásticas, SNBA 1946-1956, em Vila Franca de Xira
republicado a pretexto da inauguração do Museu do Neo-Realismo em VFX
"Geração de 45"
"Há 60 anos afirmou-se uma geração decisiva para a construção dos caminhos plurais da arte moderna"
O fim da II Guerra foi celebrado por manifestações espontâneas, a 8 e 9 de Maio, em várias cidades e na margem sul do Tejo. Salazar, que teme a nova ordem internacional desfavorável às ditaduras da Península, afastadas da ONU, anuncia uma revisão constitucional dez dias depois da rendição alemã. Em Agosto, promete «eleições tão livres como na livre Inglaterra». A censura alarga as malhas. Preparam-se golpes que falham, como sempre. A oposição organiza-se (a 8 de Outubro é fundado o Movimento de Unidade Democrática, ilegalizado em Abril de 47). As eleições para a Assembleia decorrem a 17 de Novembro, só com as listas oficiais. O clima de agitação e a expectativa de mudança ainda se prolongam até ao início de 49 com a campanha de Norton de Matos, mas o começo da Guerra Fria, em 47-48, permite ao regime restabelecer a sua lei.
1945 também é o ano da afirmação de uma nova geração de artistas, cuja acção colectiva, e qualidades individuais de alguns, iria alterar irreversivelmente o curso da arte moderna em Portugal. Nesse excepcional contexto político, ela encontrou (e construiu) condições para iniciativas com um ímpeto de mudança que lhe iria assegurar um destino e projecção pública duradouros - conseguindo sobreviver ao momento da sua aparição, o que raramente e só em casos isolados acontecera em gerações anteriores.
Três factos principais marcam a sua emergência como geração consciente de si própria. A Exposição Independente que os estudantes de Belas Artes do Porto trazem a Lisboa, onde Fernando Lanhas expõe uma primeira obra abstracta. A publicação de vinte números da página semanal «Arte» do diário portuense «A Tarde», onde se manifestam os protagonistas da Geração de 45, incluindo os futuros surrealistas, e onde é feita pela primeira vez a defesa e ilustração do neo-realismo nas artes plásticas (na literatura, a corrente afirmou-se por volta de 37). Enfim, a IX Missão Estética de Férias, em Agosto/Setembro, sob a direcção de Dordio Gomes, em que participam, entre outros, Júlio Resende, Nadir Afonso e Júlio Pomar, cujos trabalhos vêm a Lisboa em Novembro.
O Porto, cuja Escola (então dirigida por Aarão de Lacerda e com professores de mérito como Dordio Gomes) oferecia condições muito mais favoráveis que as medíocres rotinas autoritárias da congénere de Lisboa, é a base dos acontecimentos. A história dessa década viria, porém, a ocultar o dinamismo portuense, por ignorância, centralismo lisboeta e implicação facciosa noutros episódios mais tardios, polarizando-se a afirmação da chamada 3ª geração moderna nos enfrentamentos entre realismo socialista e surrealismo e entre figuração e abstracção, já segundo os códigos ideológicos da Guerra Fria, que persistiram em continuadas sínteses com informação de segunda mão.
Aí tinham surgido em 1943 as Exposições Independentes, por iniciativa dos estudantes de Belas Artes, dinamizadas por Amândio Silva, Resende e Lanhas, a que se juntam no ano seguinte outros alunos vindos de Lisboa, como Victor Palla (2ª Independente) e Pomar (3ª). Promovidas como uma «porta aberta para todas as correntes», elas ultrapassam desde 44 a lógica estudantil ao agregarem artistas mais velhos, como Dordio e Joaquim Lopes, também professor; Augusto Gomes, Guilherme Camarinha e António Cruz, oriundos do grupo + Além, de 1929; o aguarelista Carlos Carneiro e a figura singular do médico Abel Salazar, que em 45 deixaria um notável mural no Café Rialto, sintonizado com o novo ambiente político.
A 21 de Maio, os jovens artistas do Porto (de novo com os veteranos Dordio, Cruz e Carneiro) apresentam-se no Instituto Superior Técnico, acompanhados por conferências de V. Palla e Pomar, publicadas na «Vértice» (nº 12/16). São dois textos em que o tom dominante é a defesa da arte moderna, que trocara a imitação pela «representação significativa» (Palla), fazendo face à incompreensão do público e da crítica, mas também associando já as «conquistas dos modernos» a uma «finalidade activa a cumprir», a «arte social». «Sintonizar o receptor: eis o problema» - sem «retroceder pelo caminho andado», diz Pomar.
Resende, um pouco mais velho que os restantes jovens e nesse ano distinguido pelo SNI com o Prémio Armando Basto, expõe Pascoal e Girata, retratos de figuras populares solidamente construídos, com paralelo nos Moinantes de Dordio. Às presenças de Pomar, Rui Pimentel (Arco, por Artista Comunista), Nadir e Palla soma-se a primeira exibição por Lanhas de Violino (depois O2-43-44, Col. Museu do Chiado), que inaugurava uma peculiar abstracção geométrica de inspiração cósmico-metafísica, reforçando-se assim o cunho plural da ruptura que a exposição trazia ao panorama português.
Mais três Independentes (46, 48, 50, no Porto, e 49 em Braga) iriam manter as mesmas cumplicidades entre diferentes orientações estéticas, com as presenças sempre centrais de Lanhas, Resende e do escultor Arlindo Rocha, outro pioneiro da abstracção, participações neo-realistas de R. Pimentel, Jorge Oliveira (46) e Pomar (49), mais os surrealismos de Cândido Costa Pinto e de Nadir. Ligada aos mesmos Independentes estava a Galeria Portugália, na Rua de Santo António (ou 31 de Janeiro), anexa à livraria e editora criadas por Agostinho Fernandes, industrial conserveiro. Aberta em Abril, com orientação inicial de Palla, expôs, entre outros, Resende (45, prefaciado por Pomar), Dordio Gomes e António Soares (46), Pomar (47) e Eduardo Luís (50), além das três últimas Independentes.
Entre 9 de Junho e 20 de Outubro de 45, a página «Arte» faz a defesa da arte socialmente interveniente com o tom panfletário próprio do momento político e o vigor de jovens de 20 anos. Além de Pomar, que surge como coordenador, Lanhas e Palla participam na organização, enquanto Resende e Nadir, menos interessados pela política, só participam com desenhos. Entre os colaboradores incluem-se outros jovens artistas e poetas oriundos da Escola António Arroio, de Lisboa, juntando-se assim os dois pólos geográficos da Geração de 45. Alguns - Vespeira, Pedro Oom e Pomar, com José Maria Gomes Pereira e Fernando Azevedo, que não colaboram na página - tinham já surgido a público em 1942 com uma exposição num ateliê da Rua das Flores, e juntam-se-lhes então Mário Cesariny e Fernando José Francisco, que também virão a participar nas movimentações surrealistas de 47-49. É aí que aparece pela primeira vez a designação neo-realismo, a propósito duma exposição dos sombrios desenhos expressionistas de Manuel Filipe (nascido em 1908, deixa de expor em 47 por imposição do Governo).
Imagens e artigos dedicados aos muralistas mexicanos Orozco, Rivera e Siqueiros, então referidos como neo-realistas, ao brasileiro Portinari e aos norte-americanos Thomas Benton, Jack Levine e Mitchell Siporin (o realismo da «American Scene») estabelecem as coordenadas da abundante informação internacional que então chegava do outro lado do Atlântico entre a propaganda dos Aliados. Essas origens distinguirão bem os principais artistas do movimento face ao posterior realismo socialista de trânsito francês e origem soviética.
A já citada Missão Estética de Férias, em Évora, viria a ser especialmente recordada graças ao quadro Gadanheiro, de Pomar (Col. Museu do Chiado), adoptado como um dos ícones neo-realistas, e a um primeiro artigo monográfico que Mário Dionísio dedicou ao artista na «Seara Nova», projectando-o como chefe de fila da corrente - de cujo nome, aliás, discordava. Dos Independentes participavam também Resende e Nadir (que partiriam no ano seguinte para Paris, com bolsas do Instituto de Alta Cultura e do Governo francês, respectivamente) e, igualmente, Aníbal Alcino, António Lino, Israel Macedo e Arlindo Rocha, enquanto da Escola de Lisboa se lhes juntavam o escultor Vasco da Conceição e o arquitecto Francisco Castro Rodrigues. Na exposição final, este apresentou uma «Tentativa de Inquérito à Habitação» que se pode considerar o primeiro antecedente do Inquérito à Arquitectura Popular, iniciado só em 56.
A essa iniciativa anual da Academia Nacional de Belas Artes, que se repetiu pela década de 50, convocando finalistas e alguns alunos destacados das duas Escolas, também o clima político de 45 conferiu particular relevância. A imprensa local entrevistou individualmente os «estagiários» e noticiou as conferências levadas a cabo por Mário Ruivo, Castro Rodrigues, Pomar e Mário Cesariny («A arte em crise»), bem como as visitas oficiais de Reynaldo dos Santos, Diogo de Macedo e Francisco Franco, dando grande relevo à exposição final, depois mostrada na SNBA.
O ano de 1945 começara, em Lisboa, com a 9ª Exposição de Arte Moderna, na sequência apadrinhada por António Ferro, e, no Porto, com a 1ª Exposição de Arte Moderna dos Artistas do Norte, no Museu Soares dos Reis, aos quais vários dos jovens Independentes já tinham acesso. Para alguns deles, essas foram as últimas participações em iniciativas do regime, começando-se pelo final do ano a organizar exposições colectivas de oposição aos salões anuais do SNI.
Mais uma vez, o Porto tomou a dianteira com a 1ª Exposição da Primavera, que se realizou no Ateneu Comercial, em Junho de 46, e não teve sequência. Aí ficou patente uma primeira divisão da Geração de 45: Lanhas, Resende e Nadir não participam. Do grupo das Independentes aparecem Amândio Silva, Rui Pimentel, Armando Alves Martins, Eduardo Tavares e Pomar, um dos organizadores, bem como Jorge Oliveira e João Moniz Pereira, que se lhes juntara. A eles se associam, entre outros nomes esquecidos, Abel Salazar, Augusto Gomes, Camarinha e Manuel Filipe. Em Lisboa, a Exposição Geral de Artes Plásticas abriu em Julho, na SNBA. Antecipando a passagem dos 60 anos do início das «Gerais» (dez edições entre 1946 e 1956), inaugurou-se ontem em Vila Franca de Xira uma exposição que as pretende recordar.
acompanhado pelas fotos:
«Pascoal», de Júlio Resende
«Violino» ou «O2-43-44», de Fernando Lanhas
«Gadanheiro», de Júlio Pomar
Desenho de Nadir Afonso, publicado na página «Arte»
Desenho de Vespeira, publicado igualmente na página «Arte»
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