«Mimesis. Realismos Modernos 1918-1945»
comissário: Tomàs Llorens,
Museo Thyssen-Bornemisza / Fondación Caja Madrid, Madrid, Outubro 2005
1)
"Realismos em Madrid"
EXPRESSO/Actual de 01-10-2005
A primeira grande exposição da temporada de Madrid abre dia 11, no Museu Thyssen-Bornemisza e na Fundação Caja Madrid, com o título «Mimesis. Realismos Modernos 1918-1945».
Comissariada por Thomàs Llorens, que deixou o lugar de conservador-chefe do Museu a Guillermo Solana, a exposição tem por objectivo mostrar a difusão do realismo no período entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, considerando-o como uma das tendências principais da modernidade. Ao contrário de outras correntes como o surrealismo e a abstracção geométrica, que tiveram dinâmicas organizadas, o realismo é entendido como uma corrente plural que adoptou diferentes características em função dos vários contextos geográficos, sociais e artísticos. Anteriores exposições, como a iniciativa pioneira de Jean Clair, «Les Realismes», no Centro Pompidou em 1983, abordaram os realismos através da justaposição dos vários panoramas nacionais, enquanto Llorens adoptará um enfoque analítico, organizado em seis núcleos temáticos que correspondem aos géneros tradicionais da pintura.
No museu, três secções da mostra percorrem a natureza morta (com Derain, Morandi e De Chirico), o retrato («Identidade Pessoal, Corpo e Representação») e os «Interiores Com Figuras», colocando em destaque, no final, artistas como Casorati e Valloton, Pirandello e Solana, Balthus e Hopper. Na Caja Madrid, continua-se com «Figuras na Cidade» (incluindo Grosz e a relação entre realismos e totalitarismos) e «Novas Paisagens Agrícolas, Urbanas e Industriais» (com Miró, Siqueiros e Rivera, etc.), até ao capítulo «O Artista Frente à História», sobre o período decisivo de combate contra os fascismos, sublinhando aí as obras de John Heartfield, Julio González e Jean Fautrier (série «Otages»). A mostra inclui 145 obras e prolonga-se até 8 de Janeiro, sendo acompanhada por um simpósio internacional (25 e 26 de Novembro).
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2) EXPRESSO/Actual de 29-10-2005
"Regresso ao real"
Realismo e modernidade revisitados em Madrid
Ultrapassado o limiar do século XXI, é verosímil que a percepção e a memória da arte dos anteriores cem anos venham a sofrer transformações comparáveis às que aconteceram quanto ao século XIX, relegando o que teve curso preponderante nos salões e nas academias para as reservas dos museus. É certamente o que tem vindo a preparar-se, há alguns anos, em retrospectivas da primeira metade do século XX e das longas carreiras criativas que estiveram no centro da modernidade desde o seu início e muito para lá do tempo das suas emergências como vanguarda, Picasso e Matisse, em especial. Trata-se, em grande medida, de desmontar a geopolítica da arte que se estabeleceu a partir do 2.º pós-guerra, com a deslocação do centro de Paris para Nova Iorque e a fixação, pelo formalismo abstracto norte-americano da Guerra Fria, da concepção historiográfica hoje ainda dominante, que entende o modernismo como encadeamento e sucessão de inovações técnicas. A exposição que se apresenta em Madrid sob o título «Mimesis. Realismos Modernos 1918-1945» (até 8 de Janeiro 2006), da iniciativa de Tomàs Llorens, é um dos passos dessa revisão.
Intencionalmente polémica, questionável em várias das opções (por exemplo, a ausência de Picasso, como reconhece o comissário), a mostra começa por ter o mérito de dar a ver um grande número de excelentes obras de artistas menos popularizados, ou ignorados fora dos seus âmbitos nacionais, como o alemão Alexander Kanoldt, os norte-americanos Charles Sheeler e Guy Pène du Bois, os holandeses Dick Ket, Pyke Koch e Charley Toorop, o espanhol José Gutiérrez Solana, o inglês Stanley Spencer, o italiano Fausto Pirandello, entre outros.
A seu lado, a presença de artistas de maior notoriedade com longos percursos independentes, como Morandi, Hopper e Balthus, e de outros associados a movimentos históricos relevantes, como Sironi e Severini, Dix e Grosz ou Siqueiros e Orozco, estabelece as coordenadas de um panorama multipolar e plural, onde a diversidade de orientações não pode ver-se como mera sucessão de «escolas» nem autoriza a síntese num estilo realista definido.
Derain, e a singularidade da sua irrecusável decadência em oposição ao curso dos tempos, e Max Beckmann, com as alegorias modernas que respondem, a nível cimeiro, ao espectáculo histórico do período entre guerras, parecem definir as linhas extremas das diferentes tensões que a exposição procura explicitar.
Agrupadas as obras - ou melhor, postas em confronto - em seis secções partilhadas entre o Museu Thyssen e a Caja Madrid, que correspondem a géneros e a grandes temas, quando a noção de género deixa de ser aplicável, a exposição liberta-se quer da lógica da revisão dos realismos segundo as suas pertenças nacionais (seguida nas duas principais aproximações a esta temática: «Les Realismes entre Révolution et Réaction», 1980, e «Annés 30 en Europe. Le Temps Menaçant», 1997) quer da sequenciação cronológica, para analisar, numa abordagem mais sincrónica que diacrónica, o tempo longo das promessas e vicissitudes do projecto moderno.
É só no último núcleo, «O artista frente à história», dedicado a três séries de fotomontagens de John Heartfield, estudos de Julio González para a figura de Monserrat Gritando e os «Otages» (Reféns) já informais de Jean Fautrier, que a actualidade e a questão essencial da relação entre arte e política - a ascensão do nazismo, a guerra de Espanha e o terror dos anos 1939-45 - entram no discurso explícito da mostra.
Para Llorens, esse ponto final vem ilustrar, dentro do campo alargado das obras de ambição realista, o desmoronamento do projecto moderno entendido como busca (e utopia) de um estilo próprio do século XX, que se afirmara nos primeiros anos do 1.º pós-guerra (um tempo de reconstrução) com o esforço de reforçar as características disciplinares da pintura, a exactidão da descrição visual e a objectividade em oposição à expressão subjectiva - «a proximidade inicial do realismo ao formalismo acabou na exaltação do informal», conclui o comissário.
Esta referência ao formalismo situa a exposição como segundo momento de uma reflexão sobre a modernidade que o historiador e museólogo espanhol inaugurou em 2001 em «Forma. El Ideal Clásico en el Arte Moderno». O horizonte temporal era então mais vasto, com linhas de continuidade vindas do século XIX, e as obras reunidas concentravam-se na consideração de Cézanne, Degas e Renoir, Bonnard, Matisse, Derain, Picasso e Braque, Maillol e Bourdelle, Carrà, Sironi, Morandi, Gris, Dalí e o catalão Sunyer.
Classificá-los como clássicos da modernidade (pondo assim em equação duas noções antagónicas) não deve ocultar o específico sentido interpretativo do projecto de Llorens quanto ao que caracteriza como o formalismo classicista moderno: tratava-se, então, de partir do reconhecimento de que logo na primeira década do século XX, sob a influência preponderante de Cézanne e Renoir, muitos artistas se sentiram atraídos por imagens, aspectos estilísticos e atitudes teóricas próprias do classicismo, cujo desenvolvimento lhes iria permitir explorar caminhos de modernidade alternativos ao vanguardismo que eles próprios (Matisse, Picasso ou Derain) inicialmente afirmaram. Aproximavam-nos do classicismo a ambição de que as obras de uma nova condição moderna viessem a ter um valor exemplar, ahistórico ou de larga duração, bem como a crença na estabilidade de certas formas ou princípios fundamentais da pintura e da escultura. Enquanto essas perspectivas se dissolviam com as convulsões dos anos 30, a mesma lógica veio a sedimentar-se com carácter organizado no campo da arquitectura com o que se chamou o Movimento Moderno.
Este quadro conceptual permite desvalorizar o argumento do «regresso à ordem» (a «chamada à ordem» de Cocteau, em 1923), associado ao ambiente anticubista e nacionalista do 1.º pós-guerra, que se usa para condenar como reaccionarismo político os caminhos alternativos às vanguardas. Por outro lado, aquela pulsão classicista identifica na consciência dos modernos, vanguardistas ou não, a presença de um sentimento de nostalgia ou melancolia, por vezes explicitamente antimoderno, ou seja, uma ideia de perda da harmonia originária entre o homem, a natureza e a sociedade (que é partilhada por todas as atracções pelos primitivismos).
O conceito aristotélico de «mimésis», cópia da realidade, é entendido no sentido alargado que lhe deu Erich Auerbach (em 1946) no campo da literatura.
O de um impulso realista apontado, através dos tempos e de diversos modos, à representação do mundo e da vida quotidiana:
em arte, representação da realidade empírica, mais imediata do que formalmente mediada;
mais visão directa e sensorial de um modelo natural (nos diversos realismos) do que visibilidade enquadrada pelos modelos culturais - e ideais - da tradição e dos estilos (formalismos);
mais descrição-interpretação do presente, forjando os necessários modos específicos de representação (dar forma à vida actual, aqui e agora), do que criação de um mundo disciplinar específico, possivelmente ahistórico e autónomo (fixar os valores formais de um estilo «clássico»).
Realismo e formalismo classicista são assim duas tendências ou vertentes de longo alcance que, apesar de alternativos, se podem conciliar na tensão manifesta de uma mesma obra onde a construção visual da materialidade das coisas é também a afirmação do olhar de um sujeito e a consciência de uma linguagem exemplar.
Segundo Llorens, «formalismo e realismo foram divergindo e convertendo-se em opções incompatíveis ao longo do período entre guerras, enquanto mudava a natureza do projecto moderno» ao ritmo das catástrofes políticas. Do sincretismo possível na natureza-morta à tensão manifesta nos retratos, seguindo pelos «interiores com figuras (cenários íntimos)», as «figuras na cidade (paixões metropolitanas)» e as «novas paisagens agrícolas, urbanas e industriais», essa dissociação completa-se nos três exemplos finais que respondem ao presente da história, em especial em Fautrier.
Na sua deliberada diversidade (e reconhecida arbitrariedade relativa), guiada pelo método moderno da «colagem», as obras escolhidas alimentam e põem à prova a tentativa de identificar um «sentido histórico profundo que, a partir de um determinado nível de qualidade, impregna todas as obras deste período». No catálogo, o ensaio de Llorens constrói, sempre a partir das obras vistas e não dos discursos proferidos sobre elas, uma resposta exemplar ao que ele chama o descrédito das hipóteses interpretativas, marca dominante da actual historiografia da arte do século XX.
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