"Arte e revolução"
Ascensão e queda das vanguardas russas nas primeiras três décadas do século XX
Madrid, Museu Thyssen
EXPRESSO/Actual de 18-03-2006
NO QUADRO da redistribuição de lugares geoestratégicos, o império russo exporta arte depois de ter abastecido o mundo de ideologia. Faltam-lhe a produção tecnológica de ponta das novas potências orientais e os subprodutos chineses, mas tem museus imensamente ricos para sustentar a diplomacia de Putin. É neste contexto que parece que viremos a ter a delegação do Hermitage em Lisboa, seguindo a tendência para a multiplicação de museus em «franchising». Entretanto, as grandes exposições russas cruzam o globo, compensando as décadas em que o anterior regime retirara a arte moderna de circulação.
A desocultação começou em ritmo lento nos anos 70, obrigando a reescrever a história das primeiras décadas do séc. XX e fazendo sair dos arquivos muitos manifestos e biografias, em geral dramáticas. Agora, os «blockbusters» ex-soviéticos alimentam o mercado do espectáculo cultural. Foi o caso, em 2005, da Europália dedicada aos vários tempos da Rússia eterna, em coincidência com um super-«show» do Guggenheim de Nova Iorque que, sob o patrocínio dos novos magnatas de Moscovo, também recuperou o séc. XIX imperial e algumas glórias do realismo socialista. Felizmente foi descoberto há pouco um outro Quadrado Negro de Malevitch, pintado em 1930 (uma nova réplica 15 anos posterior ao original), que passa a ser a quarta versão disponível para satisfazer toda essa azáfama expositiva.
No dia 29 chega a Bilbau (e fica até Setembro) a «Rússia!» na versão da multinacional Guggenheim, com um panorama do séc. XIII ao presente que irá concorrer com a anterior exposição sobre os Aztecas e os seus mais de 600 mil visitantes. Entretanto, as portas dos museus de São Petersburgo e Moscovo, e vários outros, também se abriram para o Museu Thyssen-Bornemisza apresentar as «Vanguardas Russas» em Madrid (até 14 de Maio). É um projecto que percorre as radicais transformações da arte ao longo das primeiras décadas do séc. XX num país que em 1905 se abriu subitamente à circulação dos movimentos de ideias da Europa Ocidental e conheceu até meados dos anos 30 uma situação única de confluência e confrontação entre as ideologias que se reclamavam da revolução nos domínios da arte e da política.
Além da tradicional revolta da boémia artística contra os «filisteus», em oposição às academias e aos gostos oficializados (ditos burgueses), a procura do novo ao longo do séc. XIX conheceu episódicas associações ao progressismo em política, do realismo de Courbet ao anarquismo dos neoimpressionistas, mas é um facto inédito, já próprio das tempestades do séc. XX, o extremar da violência verbal do futurismo de Marinetti, com impacto nos meios do socialismo italiano antes de se tornar fascista.
Pelo seu lado, a situação russa e depois soviética proporciona uma observação laboratorial das relações entre as ideias de vanguarda em arte e em política, radicalizadas quase em simultâneo por Lenine e pelos futuristas no momento em que ocorrem, com o cubismo e a abstracção (ou melhor, o abandono da representação figurativa) as grandes invenções da arte moderna. Qual a contribuição das primeiras vanguardas artísticas organizadas, com o seu extremismo panfletário e os apelos à violência contra a arte e a sociedade burguesas, para a vitória dos totalitarismos, é uma questão que permanece em aberto - se se foi fazendo o processo da ideia de vanguarda em política, ela sobrevive em arte quase sem oposição crítica.
Organizada por Tomàs Llorens, o ex-director do Museu Thissen, a exposição sucede a outra grande revisão histórica, «Mimesis, Realismos Modernos, 1918-45», que teve por tema um conjunto de artistas e de tendências para os quais, após os cataclismos da Grande Guerra, a exploração de linhas de continuidade com a tradição (clássica e moderna), e em especial com a representação do real, contrariava a anterior vontade de ruptura e destruição. Foi uma movimentação plural e muito diversificada nos seus contextos nacionais que a historiografia vanguardista integra no chamado «regresso à ordem», com conotação de reaccionarismo, embora vários realismos dos anos 20 e 30 tenham sido respostas militantes às crises que desembocavam nos fascismos. Trata-se agora, com o caso russo, que lhe é em parte paralelo, de observar as manifestações mais extremas da ideologia da vanguarda num quadro em que o caos sociopolítico, primeiro, e depois o projecto de construção de uma nova ordem social e de um «homem novo» pareciam concretizar as mais radicais retóricas artísticas.
É muito significativo que, do ponto de vista dos artistas, a destruição do gosto «burguês» e a invenção da arte da nova sociedade se antecipara à revolução política, podendo ser prontamente posta ao dispor do «Plano Lenine para a propaganda monumental», em 1918. Numa situação, aliás, em que a integração no aparelho estatal era a única alternativa possível face à desagregação total do mercado de arte e, portanto, à fome.
Depois, o facto da vitória da revolução ter conduzido ao seu esmagamento, ou à absorção pelas tarefas da propaganda e das artes aplicadas, atribui-se à perversidade totalitária de Estaline. Oculta-se assim que foi a vanguarda artística russa dos anos 10 e 20 que criou o modelo cultural do totalitarismo, combatendo-se ferozmente entre si em nome de uma arte de massas de linha justa, trocando todas as formas anteriores de estética por uma concepção de arte como «engenharia social» e «meio de organização emocional da psique em função das tarefas da luta de classes», como defendeu um dos líderes do Prolectkult. Até o mais místico dos pintores, Filonov, proclamava em 1919 que se «deve organizar a arte e torná-la, como a indústria pesada e o Exército Vermelho, um instrumento eficaz ao serviço de um projecto de estado total». O que se cumpriu.
Ao usar o plural no título (vanguardas), a exposição questiona a visão mecanicista que vê no suceder das invenções um caminho linear através de etapas inelutáveis que definem sucessivos novos paradigmas: o cubismo interpretado como crise definitiva da representação e inaugurando as vias da abstracção; a pintura não objectiva de Kandinsky e Malevitch, sustentada por espiritualismos, como antecipação do seu fim nos «últimos» quadros monocromos de Rodchenko (os primeiros de uma longa série, afinal); o formalismo das especulações plásticas «puras» precedendo o construtivismo, sendo este libertado nos «laboratórios de arte» estatais de toda a subjectividade ou transcendência para se definir como programa materialista, apenas por analogia com a construção da nova sociedade proletária e da sua cultura de massas.
É todo um itinerário complexo e contraditório que a exposição dá a ver, através duma organização histórica e conceptual muito eficaz que não pratica o condicionamento do visitante com cronologias e interpretações ideológicas sumárias (mas o catálogo, com várias colaborações russas, não consegue ser o complemento necessário à ambição da mostra). A abrir, «A lição dos bárbaros» (1907-1912) centra-se na irrupção dos neoprimitivismos, que na Rússia não precisou de modelos distantes e recorreu à arte popular, ao folclore e à tradição dos ícones, com particular sentido nacionalista e um gosto pelo escândalo informado pelos «fauves» e o expressionismo alemão. As «improvisações» de Kandinsky e a idêntica liberdade da cor de Jawlensky, vindos da Alemanha, ou a descoberta de um autêntico ingénuo como Pirosmanashvili, marcam o contexto em que se movem os nomes mais identificados com a primeira ruptura, Larionov e Gontcharova.
Os mesmos dois artistas estabelecem com a proclamação do raionismo (especulação sobre a visão da luz sobre os objectos, tornada não figurativa com o pneumo-raionismo) a entrada numa nova conjuntura, antes de seguirem para Paris na órbita de Diaghilev. «Um turbilhão de energia» expõe a acelerada síntese de invenções formais que, quando a Guerra interrompe os trânsitos artísticos, explodem no cubo-futurismo e no alogismo, equivalente da linguagem inventada do «Zaum» do poeta Khlebnikov, em que os objectos se juntam «para lá da lógica e do bom senso». Falta aí, ao lado de Popova e Rozanova, a presença decisiva de Malevitch, mas comparece um importante «Contra-relevo de Esquina» de Tatlin, sobrevivente de 1914, que reduz as construções de Picasso à montagem de formas e materiais sem sugestão representativa e fora do espaço pictural.
Chagall e Kandinsky, que ocuparam altos cargos na hierarquia vanguardista oficial, até serem contestados por outros artistas e voltarem ao Ocidente, têm espaços próprios para as suas «Experiências individuais», tal como Filonov, original visionário e professor duma minuciosa «arte analítica» de microscópicas vibrações cromáticas, que em 1930 viu proibida a retrospectiva no Museu de Leninegrado. Outra direcção da vanguarda seguiu «O modelo orgânico», com que Matiushin e os três irmãos Ender perseguiram por muito tempo um «realismo espacial» que parte do sentimento em comunhão com a natureza, à margem da figuração mas rejeitando o novo culto da tecnologia.
Passa-se ao edifício da Caja Madrid para uma segunda parte, «A construção do homem novo», inaugurada pela reunião no mesmo espaço do suprematismo e do construtivismo, o que sublinha mais as contiguidades, as sínteses e os impasses formais do que as eventuais oposições teóricas. Os ícones terminais do novo «realismo não objectivo» de Malevitch dialogam com a dinâmica rítmica das arquitecturas pintadas dos «Proun» («Pela afirmação do novo em arte») de El Lissitsky, modelos da concepção de «uma só cidade mundial para todos os povos da terra», enquanto o projecto utópico de Tatlin para o «Monumento à III Internacional» roda no espaço em reconstrução virtual.
Segue-se a nova visão fotográfica de Rodchenko e também a sua utilização prática num largo sector de «design» gráfico, fotomontagem, «arte de propaganda» e publicidade, com Klucsis e Lissitsky, até 1935, quando a invenção formal e conceptual se vai vergando ao culto de Estaline, enquanto um último espaço é dedicado à «Arte da vida quotidiana». Tecidos, cerâmicas e, em especial, as bandejas pintadas que actualizavam uma tradição russa com a linguagem da vanguarda e as mensagens do regime representam outra vertente da alternativa dita produtivista que se abria ainda ao projecto revolucionário de unir a arte e a vida.
Fotos: Bandeja pintada («Proletários do Mundo, Uni-vos»), de Sofia Shulman,
1925
«Camponeses Colhendo Maçãs», do período neoprimitivista de Natalia
Gontcharova (1911)
«Proun 1C» («Pela afirmação do novo em arte»), de El Lissitsky, 1919
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