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Expresso / Actual de 19-04-2003
"Extra-catálogo" (crónica)
«Arte de qualidade »
Nos 40 anos da "Artforum" e a propósito de dois números comemorativos publicados em 2003.
Os Anos 80, por cá vividos já nos 90
A morte da pintura - depois do luto, e outras condenações teóricas
A questão do juízo de qualidade, e a obra-prima (em relação com o não saber ou recusar escolher)
A «Artforum», que se publica em Nova Iorque e é a mais influente das revistas de arte, celebrou os seus 40 anos com dois números (Março e Abril - de 2003) dedicados aos anos 80. O ponto de vista da mais internacional das revistas é vincadamente local, quase bairrista, e a divisão da arte por décadas estabelece sempre uma lógica redutora e superficial, mas a iniciativa não deixa de ser muitíssimo útil.
Os anos Reagan que terminam com a catástrofe da sida são uma década em grande medida recalcada, contraditória pela simultaneidade e a sucessão rápida de acontecimentos, e ainda demasiado próxima para ser possível revê-la com distanciamento. Nela se afirmaram muitos dos artistas que gozam hoje de maior notoriedade mediática e institucional (Cindy Sherman, Nam Goldin e Jeff Koons, por exemplo) e aí tiveram origem posições teóricas ainda dominantes na nebulosa do pensamento politicamente correcto. A evocação desses anos não é pacífica.
Parte substancial das duas edições é dedicada a uma cronologia detalhada de acontecimentos e primeiras exposições, obviamente centrada na sede nova-iorquina, acompanhada por uma longa série de 32 entrevistas que confrontam os artistas então aparecidos (ou, no caso dos não-americanos, consagrados pela chegada a Manhattan) com a sua memória desse tempo e destino posterior. No número de Março, além dos já citados, são interrogados, por exemplo, Peter Halley, Ross Bleckner e Jeff Wall, ao lado de Clemente, Armleder, Immendorf e Rosemarie Trockel, representantes do lado europeu. O reexame da actuação das revistas e dos críticos dessa década é outro dos capítulos de grande interesse e há ainda aproximações às áreas da arquitectura, da música e do cinema.
Da história ainda recente passa-se abertamente à actualidade através de duas mesas-redondas que têm por tema, primeiro, a morte da pintura anunciada na década de 80 e, depois, a sua continuidade até ao presente (ambas se podem ler no «site» www.artforum.com). É já no contexto de mais um «regresso» (novo fenómeno de moda?) que se reequacionam as condenações teóricas da pintura formuladas logo em 1980, no quadro de uma galáxia de mortes que envolvia também as do museu, do génio, do autor, da originalidade, do talento e da apreciação estética, e até do homem e do real, numa dinâmica de «desconstruções» supostamente anti-elitistas que passou pela «bad painting» e foi ilustrada pelas estratégias apropriacionistas.
Introduzida por um «statement» do filósofo Arthur C. Danto (o autor de "Depois do Fim da Arte"), o primeiro debate intitula-se «The Mourning After» (depois do luto) e conta com as participações de Thierry de Duve e Yves-Alain Bois, ao lado de críticos e comissários influentes. «Poucos funerais foram tão indecorosos como o da pintura no início dos anos 80», diz-se na apresentação e, de facto, como afirma Danto, «ninguém acredita hoje que a pintura está morta». Mas não é essa temática «divertida e patética que se retoma de cinco em cinco anos» (Duve) e que é tão velha como a arte moderna (desde a fotografia, desde Manet, etc.) o que mais importa nesta mesa-redonda riquíssima em questionamentos polémicos e tópicos de reflexão.
Danto sugere a discussão do «subtexto político» dos anos 80, que exigiu a renúncia à «boa pintura», à estética e ao prazer, comparando a «atmosfera pesada da teoria pós-moderna» à sucessão de condenações que passou dos artistas soviéticos aos muralistas mexicanos e à Revolução Cultural chinesa; Blois põe em causa a «língua franca do mundo da arte» que reduziu reflexões de autores complexos e diferentes entre si a uma amálgama empobrecida a que se chamou «teoria francesa» e pós-estruturalismo; De Duve, introduzindo a temática do «ready-made», lembra que «num contexto em que qualquer coisa pode ser arte, é muito fácil fazer arte e muito difícil fazer arte de alta qualidade».
Recuperando a questão do juízo de qualidade (mas não um suposto padrão prévio ou definição geral do que seja a excelência em pintura), o que todos eles contestam é a atitude anti-estética típica dos anos 80, o tabu do prazer estético que, após o colapso do velho sistema das Belas-Artes, dominou o mundo institucional da «arte em geral» (Duve). No final, Blois recorda a coragem de T.J. Clark ao voltar a usar uma velha palavra condenada, «obra-prima», e retoma, como razão da actividade do crítico e do historiador, a ideia de que algumas obras importam mais do que outras, tal como alguns factos têm mais ressonância do que outros, esperando que esta mesa-redonda possa ter por consequência «o início de uma muito necessária crítica dessa deliberada recusa de fazer julgamentos» («to pass judgement»).
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