A regra da intenção
Uma bienal que se fecha aos debates sobre a arte contemporânea. Escultura e desenho ou o novo academismo administrativo?
Bienal de Escultura e Desenho, Expoeste, Caldas da Rainha
Expresso Cartaz de 13 Junho 97
«A noção de arte contemporânea não é uma categoria estética nem uma categoria histórica, é, antes de tudo, uma categoria administrativa», disse Paul Ardenne no colóquio «Où va l'histoire de l'art contemporain», realizado em 1995 e acabado de publicar (ed. ENSBA, Paris).
«Certas escolas de "ponta" tornaram-se uma peça no dispositivo de promoção da arte contemporânea, ao lado de outras instituições públicas tais como os centros de arte e os fundos regionais» (em França), afirmou Thierry de Duve na mesma ocasião.
«As artes plásticas acabaram, ponto final», sentenciou Paul Virilio, numa entrevista com Catherine David, comissária geral da próxima Documenta. Esta, aliás, diz reconhecer às intervenções de Jean Clair e Baudrillard o valor de «constatações» («ArtPress» de Junho), ainda que rejeite as alternativas propostas pelo primeiro em termos de tradição disciplinar e «métier».
As referências citadas vêm de França, onde é mais poderosa a instituicionalização administrativa e, por isso, são mais sensíveis os seus efeitos sobre a criação. Por cá, importam-se ainda os modelos e procura silenciar-se a crítica a que são sujeitos. Há debates que se actualizam em cada exposição, mesmo quando elas parecem ignorá-los.
Observa-se, entretanto, um significativo acréscimo de número de
bienais, com modelos organizativos variáveis: a das Caldas é a quarta
da temporada, depois da Bienal da AIP, na Feira, e das de Famalicão e
da Maia (Arte Jovem), num ciclo que se encerrará em Cerveira. A maioria
esmagadora é nortenha e, não por acaso, a mais próxima de Lisboa é
também a mais dependente de poderes administrativos centrais (Ar.Co,
Gulbenkian e Serralves).
Tal como sucedeu em Famalicão, onde um só comissário optou —
legitimamente, diga-se — por uma determinada estratégia criativa
(«corrente» é agora uma noção improvável), também nas Caldas se está
perante uma bienal de tendência (ou melhor, de nicho), propondo um
balanço tendencialmente uniforme. O pluralismo que é necessária marca
do presente só se reconhecerá no confronto com as iniciativas paralelas.
Aliás, é também o contexto próprio das Caldas, com a sua escola de
Gestão, Arte e Design, vários museus existentes e prometidos que
recolhem os estatuários nacionais, um Museu José Malhoa despertado para
rever a tradição naturalista e ainda simpósios da pedra cujos penosos
vestígios marcam as rotundas da cidade, que parece confinar esta bienal
num nicho «contemporâneo» fechado sobre si mesmo. Que diálogo será
possível abrir com as outras realidades instaladas é uma questão sem
resposta.
Outro motivo de atenção é o âmbito disciplinar anunciado, Escultura e
Desenho, efectivamente contraditado pela lógica da «arte genérica»,
duplamente assente numa «tradição conceptual» que opta pela intenção em
desfavor da construção (formal), propondo a indiferença de todos os
objectos, e, por outro lado, na oposição à permanência de todas as
disciplinas e convenções artísticas. Recusa que se prolonga na
perseguição do «decorativo» e do objecto coleccionável, condenando o
artista à permanente dependência institucional ou ao silêncio, que
aliás se equivalem.
Exemplar é a atribuição do prémio de desenho a Francisco Tropa por algo
que era, no momento da decisão do juri, apenas um projecto (uma
intenção) e que, na sua concretização, foi de facto espectáculo ou
«acção». F.T. suspendeu-se no tecto do pavilhão, de cabeça para baixo,
e executou um diagrama da sua actuação; deixou depois cair a folha
anotada e, no encerramento da Bienal, tentará atingir com uma flecha
uma marca deixada sobre o tampo da mesa, também suspensa, que utilizou.
O projecto é «Sem título» e o autor, quando interrogado, caracterizou-o
como uma acção «abstracta».
Num total de 47 artistas expostos, encontram-se 12 estrangeiros
propostos pelos membros de uma comissão consultiva internacional, 17
alunos e professores do Ar.Co e dez outros artistas nacionais de
diversas origens mais seis outros estrangeiros, de maioria espanhola
(restringiram-se a 33 os 254 candidatos). A esse total acrescentam-se
os dois premiados da edição anterior, Ângela Ferreira e Derek Sprawson.
Na instalação de Ângela Ferreira testemunha-se um projecto
de crítica política, formulado com uma discursividade que pretende recusar
toda a relação estética, que é exemplo único nesta bienal, apesar da
insistência com que surge entre uma recente geração de artistas. A
produção genérica, restringida a artistas «emergentes», cultiva as
práticas ideossincráticas e a diluição de todos os vestígios das
formações disciplinares, em objectos que se podem dizer confessionais
quando não adoptam a categoria do «gadget». A montagem organiza-se em
espaços que isolam cada obra na sua intencionalidade individual,
trocando as condições do «Salão» por casulos mais propícios às práticas
autistas.
No âmbito da Bienal, mas no espaço do antigo Matadouro, apresenta-se
como artista convidada, Marina Abramovic. Spirit Hose reedita num
itinerário de projecções de vídeo («percurso de suplício, de
sacrifício», «quase uma peregrinação», segundo Delfim Sardo) uma
prática da «arte corporal» que foi culturalmente significativa nos anos
70. As experiências físicas (auto-flagelação, imobilidade, dança, etc)
ter-lhe-ão antes proporcionado a experiência de «estados espirituais»,
mas, para além do que pesa como histórica reconstituição, o seu
simbolismo espiritualista tem hoje uma presença equívoca que se torna
de duvidosa oportunidade no quadro da carregada memória sensorial do
espaço físico ocupado.
Ver aqui 5ª edição de 1993
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