EXPRESSO/Actual de 3 Jun. 2006
"Contaminações"
Paisagens mutantes em que vacilam as fronteiras entre natureza e artifício
Entre esta exposição e a sua estreia na galeria Pedro Cera, há dois anos, Catarina Leitão participou no Greater New York 2005, segunda edição de um balanço prospectivo para que foram escolhidos 150 artistas da área de Nova Iorque emergentes desde o ano 2000. A iniciativa foi do PS1 Contemporary Art Center, que a partir desta última data se tornara uma filial do Museu de Arte Moderna (MoMA), depois de um importante passado como instituição independente de Long Island, Queens. Foi um passo muito significativo, já com consequências noutras mostras e representações, na carreira de uma jovem artista (portuguesa, nascida em 1970 em Estugarda) que há uma década se fixou em Nova Iorque e cuja produção tem sido também mostrada com regularidade entre nós, nomeadamente no Sintra Museu de Arte Moderna/Colecção Berardo, em 2001, e no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, em 2002.
The Landscapes and The Characters, 2006, ink on paper, each 49 x 61 cm © Catarina LeitãoNuma obra que tem tido por orientação continuada o tema das relações com a natureza, tornada objecto de consumo urbano e privado, miniaturizada à escala do jardim ou artificializada como «gadget», programada como turismo ou desporto radical, surgiam nos trabalhos do Greater New York («One with Nature») insólitas figuras fardadas, certamente soldados mas sem armas, em cujos equipamentos e bagagens se introduzem formas que se reconhecem como elementos vegetais, pedaços de plantas, caules e raízes, verdes e castanhas, em contraste com o cinzento liso dos uniformes. Restos recolhidos da paisagem ou peças para a sua reconstrução, pedaços de camuflagens, instrumentos de defesa ou de agressão? Não há uma resposta exacta, mas instala-se uma sensação de desconforto e irracionalidade.
Nessa série de grandes desenhos a aguarela era levada mais longe a ambiguidade de sentidos inscrita na abordagem das relações com a natureza que já estava presente nos «Sistemas de Sobrevivência» («Survival Systems»), mostrados como peças de um catálogo de objectos de lazer e/ou de segurança, onde a domesticação da paisagem natural parece muitas vezes contrariada pela sua reaparição incontrolada e invasora.
A militarização dos personagens, que acompanhou um contexto político em que as questões da guerra e do terrorismo se tornaram muito presentes (com prolongamentos no tema dos desportos radicais), acentuava a ideia de um cruzamento de relações de atracção e medo face à natureza, passando esta da escala privada e miniaturizada presente nos objectos expostos em «Natureza Domesticada» (CAM, 2002) para uma dimensão mais global e colectiva. A observação crítica de comportamentos, onde o humor era um ponto de vista exterior à realidade observada, dava lugar a um sentimento de inquietação e a um imaginário ecológico de maior complexidade.
Esta direcção está muito presente nas novas séries agora expostas sob o título geral «Os Personagens, os Objectos e as Paisagens», sugerida por seres híbridos, possivelmente mutantes, pelas próteses e metamorfoses das figuras e das paisagens, em que deixou de ser possível uma delimitação securizante de fronteiras entre natural e artificial. Há algo de discretamente pós-apocalíptico nos patos mecânicos (Pato Voador e Pássaro com Compartimento de Bagagem) e no veado portátil e de montar, que se torna mais ameaçador no políptico Paisagem em Quatro Secções, onde, num espaço mais abstracto e ficcional, as formas naturais se transformam em redes de tubagens, aparentes intervenções tecnológicas e construções artificiais.
Nessas obras, Catarina Leitão utiliza a aguarela com uma grande segurança, distinguindo as figuras e volumes cinzentos e as formas de sugestão vegetal pintadas a cores, num desenho de precisão totalmente à margem dos processos mais correntes inspirados no «grafitti». Noutras séries de menor formato, desenhadas a tinta-da-china, propõe um inventário de motivos e ideias onde a paisagem reconstruída e artificializada, invadida por raízes-tubos, é povoada por soldados ou habitantes com equipamentos de protecção, em acções de manutenção e reparação, num universo visionário ou de ficção-científica, de imprecisas fronteiras entre a fantasia e o pesadelo.
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