1 - Cerveira sempre
Expresso / Cartaz de 09-08-97
Inaugura-se hoje a 9ª edição da mais resistente das bienais. Fundada em 1978, já na sequência de quatro anteriores e itinerantes «Encontros Internacionais de Arte» dinamizados por Jaime Isidoro, Cerveira tem atravessado em crise a década actual mas sem nunca deixar esquecer o entusiasmo dos primeiros anos. O acontecimento é turístico, é popular e, em termos artísticos, continua a ocupar um lugar próprio num terreno que se polarizou em vários segmentos específicos e em públicos em grande parte divorciados.
Este ano, o modelo organizativo adoptado valorizou o concurso aberto a uma larga participação, ao mesmo tempo que reduziu drásticamente o número de artistas convidados, dispensando a presença de uma «rectaguarda» de nomes já mais ou menos consagrados. É certamente uma forma de distinguir Cerveira de outras bienais recentes que apostam, pelo contrário, na autoridade de um ou mais comissários responsáveis pela orientação das exposições.
Três juris, reunidos em
Lisboa, no Porto e em Cerveira, avaliaram um total de 679 obras de 439
concorrentes e seleccionaram 226 trabalhos para apresentação pública —
foi no Porto que a escolha foi mais restritiva, com apenas 54 obras
apuradas, enquanto que Lisboa aceitou 93 e em Cerveira «passaram» 79.
Um juri de premiação final, ontem reunido, atribui os prémios da bienal
(pintura, escultura, «revelação» e aquisições). Integram-no
representantes da Árvore, Sociedade Nacional de Belas Artes e Instituto
de Arte Contemporânea — José Rodrigues, Fernando Azevedo e Nuno
Almeida, respectivamente — e ainda Jaime Isidoro pela organização e o
presidente da Câmara de Cerveira.
Por outro lado, a Bienal atribuiu um papel relevante às galerias de
arte, convidando dez portuguesas, seis da Galiza e cinco da Alemanha a
fazerem-se representar. O escultor Robert Schad foi o comissário da
presença alemã como país convidado, e estão presentes galerias de
Stuttgard, Freiburg, Hannover, Colónia e Wiesbaden. Três galerias de
Vigo e outras tantas de Orense, Santiago de Compostela e Corunha
constituem a representação galega. De Portugal estão presentes
Afinsa-Trindade, Alvarez, Canvas & Ca., Fernando Santos, Por Amor à
Arte e Quadrado Azul, do Porto, Gilde, de Guimarães, e ainda Módulo e
Palmira Suzo de Lisboa.
Como é habitual, Cerveira conta com uma exposição histórica, este ano
de homenagem a Dominguez Alvarez, um pintor de ascendência galega
(1906-1942) e muito breve carreira portuense, de notável carácter
expressionista e ingenuista. Por outro lado, a Bienal multiplica-se em
acções de animação, visitas guiadas e ateliers, este ano com a novidade
de um espaço dedicado às novas tecnologias do som, vídeo e informática.
(Até dia 31)
2 - Um pólo a Norte
Cerveira volta a impor a sua bienal como festival de Verão e espelho de novas circulações artísticas descentralizadas
Bienal de Cerveira
Expresso / Cartaz de 23-08-97
É a quinta bienal da temporada, mas Vila Nova de Cerveira ostenta os
galões de um pioneirismo que já vem dos anos 70 e características
únicas de festival de Verão. Conta com a beleza excepcional do lugar,
junto ao rio Minho, instala-se por toda a vila, distribuida em
múltiplos espaços de exposição ou ateliers, e é prolongada com
programas de música e cinema (até dia 31).
Com as anteriores bienais
que decorreram na Feira (por iniciativa da Associação Industrial
Portuense), em Famalicão (dedicada pela Fundação Cupertino de Miranda à
evocação de Camilo Castelo Branco), na Maia («Arte Jovem») e nas Caldas
da Rainha (de Escultura e Desenho), esta sequência inédita de
exposições, de quase absoluto predomínio nortenho, não será fruto do
acaso, nem traduz apenas a disposição das câmaras para o activismo
cultural, em ano de eleições.
É certo que o título bienal recobre substanciais diferenças de modelo organizativo, que vão do convite a um conjunto restrito de artistas por um só comissário, em Famalicão, até ao concurso aberto a todos os interessados e à participação de galerias, na fórmula mista adoptada por Cerveira. Mas, depois da condenação que caiu sobre os salões, facilitada pelo «boom» do mercado galerístico, nos finais da década passada, o relançamento das bienais parece corresponder a uma situação que tem de reconhecer-se agora plural nos seus níveis de circulação e de ambição, menos hierarquizada a partir das instituições centrais e mais segmentada de acordo com a diversidade dos lugares e dos públicos, ou dos meios artísticos. E, sobretudo, pode responder à necessidade de afirmação dos novos artistas saídos de inúmeras escolas artísticas que vieram concorrer com o ensino tradicional.
A Bienal de Cerveira não é uma exposição transplantada do centro para a
periferia, nem se apresenta como um projecto de «ponta» ou uma selecção
nacional. Promovida por uma associação local, Projecto - Núcleo de
Desenvolvimento Cultural, que o pintor Henrique Silva dirige, a Bienal
beneficia da convergência de empenhamentos diversos e descentralizados,
que contam com o dinamismo de núcleos e associações variadas de que
artistas e artistas-professores são os principais animadores (e são
eles que maioritariamente integram agora os quatro juris de selecção,
recuperando espaço a uma crítica que talvez se mostre pouco apta a
dialogar com a extensão daquele universo). É essa rede alargada de
associações, de escolas, médias ou superiores, de iniciativas
municipais e outros salões e concursos de mais pequena escala que surge
extensamente registada nas biografias de cada um dos expositores.
Aliás, com extensões pontuais a idênticos núcleos estrangeiros, de
Liège, na Bélgica, e, em particular, da Galiza, por natural proximidade
geográfica.
Os ateliers instalados em vários locais de Cerveira, da cerâmica às
novas tecnologias, passando pela gravura, a escultura em pedra, etc, de
funcionamento diário e porta aberta, mais do que o velho espírito da
animação cultural parecem responder também a esse mesmo novo espaço
incerto que é o das profissões ou actividades artísticas, e que se
estende do artesanato ao design e à exploração dos meios informáticos.
E o painel que torna pública a participação de fundos comunitários
(Feder, Pro-Norte) a cobrir metade do orçamento da Bienal, lá está a
informar que a autonomia ou o contexto da arte não se separa com
nitidez das estratégias do desenvolvimento regional.
No pavilhão central da Bienal, erguido à beira rio, encontra-se
primeiro uma área oferecida a dez galerias, com natural maioria
portuense, sem características de feira de arte mas constituindo uma
amostra da diversidade das suas escolhas — a Módulo foi a única que
optou por apresentar um único artista, Manuel Botelho. Ao lado,
abrem-se duas mostras de artistas alemães e galegos, também reunidos
por intermédio de galerias de arte. A selecção alemã, com 14 artistas
de cinco galerias, resulta da colaboração de Robert Schad, escultor com
recente passagem por Serralves e Gulbenkian, e se não mobiliza nomes
conhecidos (também na Alemanha nem todos os artistas saiem nas
revistas) mas não deixa de dar testemunho das diferenças de orientação
criativa que fazem a actualidade. Tal como sucede com a mostra da
Galiza, que é, aliás, de interessante qualidade média.
Adiante, há um espaço reservado a convidados, extra-concurso, que
acolhe em especial os organizadores da Bienal, e abre-se depois a área
dos artistas seleccionados, num total de 166 em 439 concorrentes. O
panorama é muito diverso e intencionalmente abrangente, com legítimo
destaque para os dois premiados, Joana Rego e Nuno da Silva, a que se
acrescenta a possível «revelação» de 1Berto Castro, mas com uma colagem
de papéis fotográficos que por ser peça única não autoriza qualquer
juízo.
Joana Rego dá sequência a uma série vista na Árvore e no Museu de
Amarante sob o título «Invisible Touch», onde o corpo e o erotismo são
referidos por imagens fragmentadas que vêm da circulação mediática e
por mensagens escritas, com a ironia neo-pop de uma pintura conceptual
que ao mesmo tempo afirma com energia os valores do «medium». Nuno da
Silva, arquitecto, de Lisboa, participou numa colectiva da ZDB
(«X-Rated») e na Bienal das Caldas, sempre com construções que utilizam
lâmpadas e sistemas luminosos, e mostra agora um objecto-maquete do que
deverá ser um espaço penetrável, em que redes de pequenas lâmpadas
entre paredes de plástico colorido e espelhado provocam um efeito de
multiplicação em abismo.
Outras presenças que se anotam por escolha pessoal, com o gosto de
surpreender obras desconhecidas (os salões favorecem esse prazer ou
risco) são as de Cristina Valadas e Isabel Padrão, de Maria João
Fernandes (sequências de escrita ideográfica e secreta, inventário de
Cidades Invisíveis), Marta ou Paulo Barros, Edmundo Paz e Sílvia
Carreira, além de Augusto Canedo e Manuel Vilarinho, já com maior
circulação.
Entretanto, um núcleo monográfico, dedicado a Dominguez Alvarez, mantem
a tradição das homenagens históricas de Cerveira e é, neste caso, uma
memória forte de anteriores cumplicidades com a Galiza .
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