Arquivo (há dez anos)
De Kooning, um continuador
EXPRESSO/Cartaz de 28-3-97, pág. 3 (Actual)
Se de Willem de Kooning se podia dizer que era o maior pintor vivo, o último qualificativo tornara-se há muito o mais problemático. Como escreveu Philippe Sollers, no «Le Monde», de Kooning não morreu, apenas se acabou de extinguir, muito velho e como que já ausente de si próprio. A doença de Alzheimer dominara-o ao longo da década passada, embora tivesse continuado a pintar talvez até 1990. Faleceu com 92 anos, no dia 19, na casa-atelier que construira em East Hampton (Long Island, N.I.) e foi recordado como o último mestre do expressionismo abstracto ou o último dos grandes pintores, como se diz sempre.
Entretanto, a obra realizada na última década, entre 1981 e 87 é
actualmente mostrada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, por entre
desencontradas opiniões. Os arabescos lineares e entrelaçados, que já
se compararam aos movimento dos patinadores dos lagos gelados da sua
juventude holandesa, dominam essa derradeira pintura liquefeita e fria
desenhada sobre espaços brancos — aparecer final de um pintor que nunca
se deixou prender a um estilo. Foi um «professor de liberdade,
irredutível isolado, empírico, céptico, crítico», como em tempos o
(não) definiu Philippe Dagen.
Willem De Kooning nasceu em Roterdão em 1904 e emigrou para os Estados
Unidos em 1926. Foi pintor de paredes e decorador de montras nos
primeiros tempos, apesar da formação académica e da determinação em
«ser um artista», formulada logo em 1927, depois de visitar uma
retrospectiva de Matisse. Só realizou a primeira exposição individual
em 1948, aos 44 anos, quando já era considerado um «chefe de fila» da
primeira pintura americana de repercussão internacional — o chamado
expressionismo abstracto da Escola de Nova Iorque —, mas só por volta
de 1956 passou a poder viver inteiramente da pintura: eram outras, ao
tempo, as velocidades da consagração e do mercado.
Porém, De Kooning talvez tenha sido antes o primeiro pintor
pós-moderno, como já disse Yves Michaux, ou pelo menos um precursor,
que face às rupturas fundadoras dos modernismos e a todos os projectos
iconoclastas ou normativos contrapunha «a impressão de pertencer a uma
tradição», a mesma de Ingres, Cézanne, Van Gogh, Soutine, Matisse e
Picasso, Léger e Giacometti, sempre sem estritas obediências. A sua
recusa da ideia de estilo e de todos os sistemas dogmáticos, de todos
os «ismos», o seu trânsito constante entre a figuração e a abstracção,
que praticou por vezes em simultâneo, tornaram indefinível a sua
pintura segundo as habituais classificações escolares. Já em 1950
fulminara a busca de uma designação colectiva: «Nomearmo-nos a nós
próprios é catastrófico».
Aprendiz numa empresa de decoração aos 12 anos, frequentava à noite a
Academia de Roterdão, até 1925, e recordou mais tarde que já nesse
tempo «os jovens artistas não estavam interessados pela pintura
enquanto tal (era uma coisa de fósseis!); a ideia de ser um artista
moderno não tinha nada a ver com a de ser um pintor» — declarações de
1963 que têm uma perturbadora actualidade. Mais tarde disse: «Acontece
que sou um pintor eclético. Posso abrir um qualquer livro de
reproduções e encontrar um quadro capaz de me influenciar. É muito
agradável fazer alguma coisa que se faz no mundo desde há 30 mil anos».
No apogeu da afirmação da Escola de Nova Iorque, o encontro com Harold
Rosenberg, teórico da «action painting», pareceu aproximá-lo de um
entendimento existencialista da criação. A propósito também da pintura
gestual de Pollock, Kline e Motherwell, o crítico escrevia em 1952 que
a tela passara a ser «uma arena onde agir, mais do que um espaço onde
reproduzir, re-desenhar, analisar ou exprimir um objecto, real ou
imaginário. ...O que nascia sobre a tela não era uma imagem mas um
acontecimento.» Mas o chamado expressionismo (abstracto ou não) de de
Kooning não é exactamente o declarar de uma interioridade ou
confessionalidade, como uma «auto-expressão» existencial e
psicologista. Quando de Kooning diz «não pinto com ideias preconcebidas
sobre a arte, parto com qualquer coisa de vivido», o seu «vivido» tem a
ver com a «petite sensation» de Cézanne e com um infatigável desejo de
pintura, numa dupla operação de produção, do quadro e da identidade do
pintor («I paint myself out of the picture», a enigmática fórmula de
1950).
O investimento físico do artista com a sua tela não significava que o
acto da realização (a «performance») interessasse mais do que o objecto
criado, a pintura, a imagem e o seu «assunto». E no auge da «action
painting», em 50-52, de Kooning regressava à figura com o início da
série «Woman», como se se tratasse de reconstituir em formas humanas
reconhecíveis os fragmentos antes dispersos: «As 'Mulheres' têm a ver
com a mulher tal como ela foi pintada através dos tempos, com todos
esses ídolos», disse. Elas inscreviam-se na mesma tradição das mulheres
de Picasso, com o modo directo, frenético e escandaloso que seria
também o da última pintura de Picasso.
A tensão pictural das suas telas, tensão sexual também, parece residir
na luta entre a criação e a destruição deixada visível nas marcas dos
gestos do pintor — essa experiência vital, mistura de voluptuosidade e
violência, do prazer e desespero de um fazer sensível, é certamente
aquilo que é hoje mais desprezado por uma produção artística
escolarizada e mediaticamente programada.
Em 1955 o pintor regressava à abstracção, primeiro com a mesma
densidade gestual, a seguir simplificando-a, em movimentos mais amplos
e mais rarefeitos, dando o desenho lugar a um predomínio da cor, mais
lírica, em telas legíveis como um paisagismo abstracto («como se
Soutine tivesse recopintado uma tela de Mondrian», escreveu Irving
Sandler). E de novo no início dos 60 o pintor voltava às figuras
femininas: «A carne é a razão porque se inventou a pintura», disse o
pintor. E a sua produção continuaria ainda, ao longo de um total de
seis décadas.
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