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Exposições Gerais de Artes Plásticas
«Um grande comício sem palavras»
Expresso/Actual de 07-Out.- 2005
"A dimensão política das EGAP e a presença da arquitectura, com lembrança de Keil do Amaral"
Num artigo de 1975, «Para a História da Resistência Portuguesa», Mário Dionísio lembrava: «Ia-se à Exposição Geral de Artes Plásticas como se vai a uma manifestação. A EGAP era um grande comício sem palavras». A dimensão política das dez mostras que a SNBA acolheu até 56 (com excepção de 52, por estar encerrada) é uma indispensável componente de qualquer evocação das Gerais, mesmo que daí não decorra um juízo mais favorável quanto à qualidade plástica das obras que lá se expuseram.
O escritor e ensaísta, igualmente pintor, lembra o «público imenso, como nunca se vira entre nós em coisas de arte», atraído ao salão, desde 46, «por depressa ter corrido que a única condição que ali se punha a cada expositor era a de não ter exposto nunca no SNI ou de não voltar a lá expor a partir daquela data». Dionísio, aliás, abandonou as Gerais depois de 53 em protesto contra a participação de vários artistas na Bienal de São Paulo, com apoio oficial, e no ano anterior demitira-se do PCP no contexto da «polémica interna do neo-realismo», com que culminou a pressão ideológica mais alinhada com o estalinismo.
No catálogo da última edição, já de espírito retrospectivo, o prefácio anónimo refere as Gerais como «frente unida dos artistas na conquista e defesa da sua independência frente à arte e à vida», usando as fórmulas dum tempo de repressão. O balanço orgulhava-se de «nelas ter vindo até ao público (...) o movimento conhecido por neo-realismo, a tal ponto que a história do neo-realismo nas artes plásticas em Portugal é, numa boa parte, a história das EGAP». Genericamente, aí se tinham reunido os artistas que «procuram alcançar a linguagem simples, comum e nobre com que o homem se faz compreender e compreende o outro homem».
Referia-se, assim, a intenção da «arte útil», que associava de modos individualmente variáveis a ideia de vanguarda estética, procura de uma arte moderna, à de vanguarda política, a que os neo-realistas pertenciam enquanto militantes do PC - as obras agora expostas do próprio M. Dionísio, com o seu reconhecível amadorismo, testemunham a vontade de um realismo social moderno, à distância do programa soviético do realismo socialista. E referia-se também na mesma fórmula a questão decisiva da legibilidade das formas e das intenções, que atravessava, numa dinâmica internacional que dominou a época, a busca de um novo realismo capaz de prolongar diferentes tradições realistas nacionais vindas desde o século XIX (o que não podia suceder em Portugal por insuficiência histórica), sustentando-as com as conquistas da modernidade nas condições do pós-guerra e, depois, da Guerra Fria.
A actual exposição reconstitui a abrangência estética e geracional das EGAP, concedendo naturalmente o espaço central ao neo-realismo, cuja afirmação, se nunca foi maioritária nos salões nem teve contornos definidos (não foi um estilo e várias vezes os defensores da corrente se manifestaram contra a própria ideia de estilo), durou o tempo das Gerais, para se dissolver depois em percursos pessoais e em divisões mais amplas entre figurativos e abstractos, que as novas figurações dos anos 60 iriam redefinir.
O pluralismo correspondia ao frentismo antifascista, logo em 46, por iniciativa da Comissão dos Escritores, Jornalistas e Artistas Democráticos do Movimento de Unidade Democrática (MUD), que organizou a EGAP por convites e sem júri, como aconteceu até final. Mas a 1ª Geral, como sugere o prefácio anónimo do catálogo, escrito por Dionísio, retomava também a inspiração dos Independentes dos anos 30, em especial do seu 1º Salão, que juntara arquitectos, cartazistas, decoradores e fotógrafos, e voltava a contar com alguns intervenientes de então (Abel Manta, Carlos Botelho, Ofélia, Júlio, Arlindo Vicente, Mário Novais e A. Pedro).
Essa convivência das diferentes especializações está só simbolicamente representada em Vila Franca, por limitações de espaço e de organização que se compreendem. A larga participação da arquitectura nas Gerais é testemunhada apenas por dois projectos de Bento de Almeida/ Victor Palla. Um deles, o snack-bar Pique-Nique, ilustra a modernização dos espaços comerciais lisboetas nos anos 50 (com Keil do Amaral e Conceição Silva, em especial) e a renovação do design gráfico, para além de incluir uma notável fotografia impressa. No entanto, é essencial que a memória histórica das Gerais seja rectificada com o conhecimento da passagem pela SNBA de parte essencial da luta pela afirmação do Movimento Moderno, que teve o momento de viragem no Congresso Nacional de Arquitectura, em 48 - Ana Tostões abriu o caminho no livro Os Verdes Anos da Arquitectura Portuguesa dos Anos 50 (1997).
Se essa luta se fazia em oposição directa à arquitectura oficial e oficiosa do regime, em cumplicidade com a dinâmica neo-realista, ela também é essencial para entender um contexto ideológico em que a lógica da modernidade forçosamente se dissociava dos programas oriundos da União Soviética. E se, no âmbito das artes plásticas, as Gerais são um espaço e uma conjuntura de afirmação de alguns artistas que depois seguiram diferentes caminhos, elas foram palco, no caso da arquitectura, de um momento fundador de renovação.
A figura que então lidera essa dinâmica é Francisco Keil do Amaral (1910- 1975), arquitecto moderno e colaborador «técnico» de Duarte Pacheco, militante do MUD sem filiação partidária, eleito presidente do Sindicato dos Arquitectos em 48 e afastado no ano seguinte. A sua ausência desta exposição e do catálogo é incompreensível, tanto mais que, além de assíduo expositor, foi um dos dois principais organizadores. O outro é Mário Dionísio (1916-1993), e Júlio Pomar (no Porto em 46, na prisão em 47) junta-se-lhes a seguir.
Haveria também de estudar o lugar da fotografia das Gerais, iniciada com Mário Novais, que colaborara com Keil na Exposição de Paris em 37 e foi um dos fotógrafos da Exposição de 40 em Belém. Para além das fotografias de arquitectura, ela voltou a estar presente em 50, 54 e 55, com os nomes mais constantes do próprio Keil e de Victor Palla e passagens de Adelino Lyon de Castro e Augusto Cabrita. Não é irrelevante que o projecto de Lisboa, «Cidade Triste e Alegre», de Palla e Costa Martins, comece em 56.
Entretanto, a caracterização das Gerais como espaço de emergência de artistas já posteriores ao momento fundador da «3ª Geração» (Geração de 45) poderia ter sido mais eficaz, para além das presenças de Relógio e António Quadros. Lá estiveram Lagoa Henriques, Gustavo Bastos, Demée, Armando Alves e Eduardo Luís, vindos do Porto, e em especial António Charrua (uma «revelação» em 53) e João Cutileiro. Mais António Areal e José Escada, René Bertholo, Guilherme Lopes Alves, Lurdes Castro, já protagonistas de outra promoção que passou pelo jornal «Ver» e a animação da galeria Pórtico.
À memória e ao activismo dos históricos das Gerais (com a homenagem devida a Rogério Ribeiro) - ou dos seus adversários também históricos - deve agora suceder o trabalho de investigadores de outras gerações.
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