O arquitecto de Lisboa
Nas décadas negras de 40 e 50, Keil do Amaral projectou os espaços verdes e os grandes equipamentos da capital
Expresso Cartaz 27-02-99, p. 18
FRANCISCO KEIL DO AMARAL
Palácio Galveias (até 14 de Março)
POR vicissitudes várias a exposição «Keil do Amaral, o Arquitecto e o Humanista» chegará ao fim antes da publicação do livro-catálogo que a deveria acompanhar, e este só será conhecido quando se inaugurar a 17 de Março, no Museu da Cidade, uma outra mostra dedicada ao arquitecto fotógrafo que impulsionou o Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa e também ao fotógrafo amador. A não coincidência desses actos acabou por diminuir a projecção da retrospectiva e homenagem que a cidade de Lisboa (ou a respectiva Câmara) finalmente dedica a um dos arquitectos que mais a marcaram, depois da revisão da sua obra ter estado prevista desde há dez anos pela Fundação Gulbenkian.
Se se recordar que foi Keil do Amaral quem projectou o Parque de Monsanto, o Parque Eduardo VII e o jardim do Campo Grande, no quadro da renovação urbanística dinamizada por Duarte Pacheco, é forçoso atribuir-lhe a contribuição decisiva na criação dos mais importantes espaços verdes da capital. Acrescente-se-lhes o aeroporto (1938-42), a FIL (1952- 57) e a primeira fase do metropolitano (inaugurada em 1959) e têm-se outros equipamentos determinantes da modernização de Lisboa, mesmo se todos eles conheceram depois transformações ou deturpações que alteraram quase por completo a configuração original dos projectos, num processo extremo de diluição de autoria e memória.
Apontado por vezes como o mais importante arquitecto lisboeta dos anos 40 e 50, o reconhecimento de Keil do Amaral foi persistentemente ocultado pelo regime político que combateu, mas deparou também com a adversidade resultante das insuficiências do trabalho historiográfico nacional.
O modo original como actuou durante essas décadas particularmente difíceis da vida nacional, encarregando-se de importantes obras públicas sem se identificar com o regime nem com os padrões historicistas do gosto oficial, bem como a distância crítica que também manteve em relação à ortodoxia do Estilo Internacional, na procura de uma «terceira via» que conciliasse a racionalidade moderna com a consideração realista das lições da arquitectura tradicional, terão contribuído para tornar mais complexa a abordagem da sua intervenção profissional. A figura independente de oposicionista, o empenhamento na organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas (1947-56), que foram uma frente importante de afirmação da arquitectura moderna, embora menosprezadas no processo da hostilização fantasmática do neo-realismo, e ainda as características mais pessoais da sua arquitectura, pouco interessada no aparato formalista, guiada por princípios éticos e valores de equilíbrio espacial e sobriedade que não buscavam projecção mediática, foram outros factores de idêntica consequência. De facto, não podiam ser facilmente aceites a conjunção de rigor e humor de um homem que criticava a «arquitectura pífia, mesquinha, etc., na exacta medida em que nós o somos, de modo geral...»
A sua obra arquitectónica e urbanística não se esgota na actividade desenvolvida em Lisboa - o edifício do Instituto Pasteur no Porto, de 1935, o Pavilhão de Portugal na Exposição Mundial de Paris, de 37 (de «carácter moderno embora português», segundo o programa de António Ferro; atribuído num concurso em que Raul Lino ficou vencido), as Escolas para a Fábrica Secil, em Otão, Setúbal, de 38-40 (exemplo do seu «racionalismo sem dureza nem secura», K.A.), são realizações significativas do início da sua actividade; muitas vivendas das imediações de Lisboa ou os estudos e projectos para Tróia e para o Algarve, já na década de 60 (obviamente não concretizados), foram outras intervenções significativas de uma longa carreira. A obra escrita está por reeditar e continua a faltar uma antologia das suas conferências e artigos.
O livro a publicar pela Câmara de Lisboa, sob a coordenação de Irisalva Moita, recolherá a reprodução do material gráfico e fotográfico agora exposto e também um conjunto de testemunhos sobre a figura do democrata e do activista das causas da arquitectura. Entretanto, a exposição, comissariada por Ana Tostões, que já fora a autora da notável retrospectiva da arquitectura portuguesa do século XX mostrada em Frankfurt e também no CCB, resulta de um exaustivo levantamento das obras projectadas por Keil do Amaral para Lisboa, apresentadas através dos desenhos localizados em diferentes arquivos, de algumas maquetas recuperadas para a ocasião e de abundante material fotográfico.
As qualidades da montagem do itinerário expositivo, sobre painéis que correm ao longo de toda a parede disponível, requalificando uma galeria de difícil funcionalidade; a valorização dos desenhos originais, que são particularmente elucidativos da metodologia de projecto do arquitecto, e o tratamento dado à fotografia, em geral excelente e com a permanente identificação dos seus autores - o próprio Keil, Mário e Horácio Novais, Luís Pavão, já em 1992, e outros -, distinguindo sempre as provas originais das reimpressões modernas (o que, apesar de óbvio, é ainda uma lição para as instituições oficialmente dedicadas à fotografia), são factores que importa pôr em destaque.
A exposição organiza-se numa sequência de núcleos temáticos que se iniciam com os três grandes espaços verdes da capital e as construções neles implantadas - ou projectadas e não construídas, com o destaque natural para o Palácio da Cidade, que foi o seu maior projecto de sempre, sucessivamente trabalhado de 1948 até 1972. Aí se incluem o Clube de Ténis e o restaurante (destruído) de Montes Claros, a piscina infantil e o restaurante (destruído) do Campo Grande, obras significativas da atenção aos valores do sítio e de um particular uso das escalas e dos materiais, modernos e tradicionais. Seguem-se, num alinhamento que só é cronológico dentro de cada área temática, os grandes equipamentos e serviços - a aerogare, o Parque de Diversões da Exposição do Mundo Português e a estação de caminhos de ferro de Belém (ambos inseridos no espaço cenográfico da celebração do Império mas curiosamente distanciados da carga ideológica envolvente), o metropolitano, incluindo o programa das estações decoradas por Maria Keil, o «design» dos pequenos equipamentos e o «lettering» que também já foi absurdamente substituído, e ainda o grande projecto da Feira das Indústrias.
Depois, as lojas da baixa lisboeta, abrindo um processo de renovação dos espaços comerciais que seria continuado pela dupla Victor Palla–Bento de Almeida e a seguir por Conceição Silva, e ainda a habitação, com dois exemplos de bairros económicos e maior número de residências unifamiliares (o prédio de rendimento nunca o cativou).
Por fim, uma síntese biográfica e documental sobre o empenhamento cívico e as lutas profissionais do arquitecto, dinamizador do ICAT (Iniciativas Culturais Arte Técnica), interveniente no Congresso de 1948, animador da revista «Arquitectura», eleito presidente do Sindicato e impedido de tomar posse, etc...
Nascido em Lisboa, mas muito ligado a origens beirãs, Keil do Amaral (1910-1975) começou a vida profissional como «designer» publicitário (com Fred Kradolfer) e foi discípulo de Carlos Ramos. Arquitecto da Câmara de Lisboa entre 1938 e 1949 (pediu a exoneração no contexto do endurecimento político do regime após a Segunda Guerra), esteve associado à permanência de uma corrente de fundo moderna sob a obra do Estado Novo. Se o tempo exigia compromissos, as obras testemunham o interesse por «uma arquitectura progressiva e moderna, embora guardando das tradições a justa medida» (K.A.), que não constitui um processo de cedências mas a afirmação de uma posição esclarecida no questionamento da polaridade entre as raízes tradicionais e o internacionalismo da arquitectura.
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