As questões dos limites e fronteiras da arte ocupam parte dos discursos críticos, sempre no sentido da enunciação de uma suposta ultrapassagem de barreiras que de facto já não existem há muito tempo. Ou que não existem a respeito da configuração material dos objectos considerados artísticos, mas que subsistem como fronteiras traçadas pela diferenciação entre lugares de exposição ou limites fixados por categorizações conceptuais.
Ou seja, dentro do espaço do museu e da galeria tudo é arte, depois de ter passado as portas e desde que se lhe atribua a categoria abstracta de "arte em geral", distanciando-se de outras categorias precisas mas menores, como ilustração, artesanato, lavores ou decoração, design, publicidade, etc. A hierarquia dos géneros recompõe-se em permanência, sobre renovadas convenções distintivas.
Mas o que é hoje problemático e desafiador (na mesma lógica desse passar os limites - há outras lógicas, que têm menos a ver com proezas e records) é o que não se identifica a si mesmo como arte e acontece no exterior do seu espaço institucional, oferecido a outros destinatários para além dos seus prevenidos visitantes. Por exemplo, não a falha no chão do Hall das Turbinas da Tate Modern, mas a tinta vermelha lançada na Fonte de Trevi, em Roma.
Para além destes preâmbulos inutilmente generalistas, os livros de pano de Louise-Marie Cumont mostrados no Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro, são o objecto de uma exposição diferente.
Louise-Marie Cumont, Os Automóveis (Les Voitures, 1995), pormenor
Os livros mostram-se em vitrinas e as suas páginas multiplicam-se
separamente emolduradas ou dispostas num suporte comum. Aumentando a
escala, a página torna-se colcha, ou quadro-colcha (com alguma
afinidade com as colagens sobre tela ou experiências de moderna
tapeçaria). Sobre uma delas, colocada na horizontal, os livros
folheiam-se, desdobram-se, manipulam-se. Não são, à partida, objectos
para exposição, e sim para usar, mas. por trás dos vidrod, vencem a
prova desse desvio.
Os tecidos (muito diversos entre si, com qualidades próprias). O
corte e costura (o recorte, maneira de desenhar com a tesoura, desde
Matisse, ou com antigas e populares tradições; e algum bordado muito
simples). O patchwork (híbrido processo de composição e conjunção de
materiais).
O livro infantil, com os seus argumentos simbólicos e sintéticos, a
ilustração antes da literatura, ou mesmo da palavra - exemplares únicos
ou edições manualmente repetidas em escassos exemplares; ou reproduções
impressas, já numa outra lógica de ultilização. A referência frequente
a Malevitch, explícita no caso do quadrado vermelho sobre branco,
sistemática no trabalho de desenvolvimento construtivo das formas
sintetizadas (não suprematistas).
A cadeira, a cama, a casa, o automóvel - o universo todo, a partir das
coisas primeiras. A figura humana, as relações interpessoais e
familiares. Por aí fora. Uma arte de proximidade (o contrário da
ambição dita modernista de criar uma linguagem artística autónoma e
independente de todas as outras formas de expressão).
"Tissus mis en page" (tecidos paginados) / "No melhor pano cai o livro".
Exposição (livros de artista/ilustrações em tecido): Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro. Até 18 Nov.
Comissários Ju Godinho e Eduardo Filipe. Ilustrarte
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