Apresentou-se como «a produção plástica mais relevante dos anos 90»
Anatomias contemporâneas
Fundição de Oeiras
Comissários: Paulo Cunha e Silva e Paulo Mendes
EXPRESSO / Cartaz de 22 11 1997
A imagem da promoção, tomada a Bronzino (Alegoria do Triunfo de Vénus), recorda o maneirismo mais oficial e precioso da Toscânia do século XVI para apresentar outros maneirismos que se instalam como actual arte da corte. Outra imagem, A Origem do Mundo, de Courbet, a fechar o catálogo, repõe a questão decisiva: o que resta do «real»? A «forte intervencão autoral dos gráficos» (de Paulo Seabra e Dr. Mabuse) faz a crítica de uma exposição sustentada na «convicção» dos comissários de que, «paradoxalmente, há cada vez mais corpo e cada vez menos corpo».
Já a montagem das obras em «casulos», levada a um excesso que é a caricatura de uma moda, não as favorece nem propicia a reflexão. Anula com a generalização das condições de visibilidade próprias do vídeo e do «ambiente» o que deveria ser a prova experimental da presença física da pintura, da escultura e da fotografia. Atomizada, congelada na sua caixa branca, tantas vezes exígua, a possível singularidade da obra torna-se manifestação de autismo, sustendo o fluxo de um diálogo do espectador com ela e consigo mesmo que se potenciaria com os cruzamentos das peças entre si. Se «pensar o corpo contemporaneamente é, sobretudo, ser sensível às suas apresentações, às suas anatomias» (Paulo Cunha e Silva), não é nas condições de um voyeurismo asseptizado — hospital ou prisão? — que essa sensibilidade (estética, certamente) melhor se exercita.
Há objectos insólitos nesta exposição, que não cabem na ordenação
simultaneamente escolar e autoritária das células-conceitos que as
encerram. A anteceder as casas do «corpo com e sem orgãos» (em
«interpretação livre» de Artaud-Deleuse), as «macas» de Graça Pereira
Coutinho, War Zone II, transportam marcas simuladas de corpos feridos,
mas essa simulação recusa a banalização e a indiferença proposta
noutros objectos que apenas devem testemunhar a sua inutilidade, como
efeitos de uma convenção — já não a regra de uma disciplina mas o
espaço social da arte.
O «estudo» de Paula Rego (Sem Título, 1995) é o
exercício da observação de um modelo, repetindo (reaprendendo) na
afirmação da realidade do corpo do outro uma tradição quase perdida,
mas trocando a tradição do nu por uma outra consciência feminina do
olhar.
O Centro do Corpo, de Albuquerque Mendes (de uma série de
pinturas «sobre espinhos»), estabelece no contexto das «Anatomias»,
entre oportunismos pornográficos, a diferença de uma vontade simbólica,
que é aproximação cifrada a um sentido de absoluto e imagem da pintura.
E, entre outros, Sebastião Resende, presente com uma forma animal (que
não ganha em ser explicada como espermatozóide), Augusto Alves da Silva
(fotografia), Pedro Pousada (desenho/BD).
Os comissários fizeram uma escolha («uma primeira e subjectiva
recolha»). Não se entende se essa subjectividade é a do juízo estético
ou se primeiro se construiu uma grelha conceptual que legitima o
recalcamento de outros corpos. O folheto engana: esta não é «a produção
plástica mais relevante dos anos 90».
Estas «Anatomias» ocultam outras,
sacrificando os poderes da imagem à táctica do «entertainment». «Uma
imagem é justamente uma abstracção do mundo em duas dimensões, é o que
tira uma dimensão ao mundo real, e por isso mesmo inaugura o poder da
ilusão. (...) A virtualidade tende à ilusão perfeita. Mas já não se
trata da mesma ilusão criativa que é a da imagem (também a do signo, do
conceito, etc).» «O iconoclasmo moderno já não consiste em quebrar as
imagens, mas em fabricar imagens, uma profusão de imagens em que não há
nada para ver» — Jean Baudrillard.
Outra recolha incluiria Batarda (por exemplo, Interior, 1991-92, o secador de garrafas de Duchamp passado a pintura, máquina uterina) e Rui Chafes; com Maria Beatriz, Ruth Rosengarten e Fátima Mendonça, José M. Rodrigues, Mónica Machado, Joana Rego, as anatomias seriam menos dóceis às facilidades da reciclagem. De facto, a exposição é uma máquina de guerra: manifestação de um grupo de artistas que tem insistido em apresentar-se como a «geração de 90», mas abdica agora da ruptura geracional para se colocar na continuidade do «establishment», que fica, por vezes, com incerta representação. As suas produções (a ideia de obra é-lhes alheia) condensam um conjunto de exposições sempre colectivas e temáticas, mas na reedição não se compensa a insuficiência do trabalho da forma com a declaração histérica do sentido.
O catálogo, tal como os colóquios, apresenta-se como parte do mesmo
projecto reflexivo. Aí se encontrarão provas do ensaismo que sustenta a
«geração»: «Ao longo das salas, este corpo polissémico revela-se
através da sua ausência: os objectos apresentados são próteses de
conceitos que o procuram traduzir nas suas múltiplas variantes» (Óscar
Faria).
É o pensamento como moda: «Vivemos na era do corpo
pós-orgânico, do corpo tornado obsoleto, anestesiado, pelas novas
tecnologias». Fúnebre: «Sem remédio, sem futuro, a arte vive hoje uma
situação "post-mortem"».
Mas trata-se sempre de um discurso virtual,
porque, como nota Jean Clair (La Responsabilité des Artistes, 1997),
«as ideias de aprendizagem, de mestria, de «métier», de perfeição
técnica que há muito tempo desertaram dos ateliers subsistem, porém,
nas outras formas de arte, que hoje as requerem tanto como ontem».
É todo um campo da reflexão recente que escapa à antologia de Miguel
von Haffe Pérez. Outra vez Jean Baudrillard (Illusion, Désilusion
Esthétiques, 1997): «Tem-se a impressão de que uma parte da arte actual
concorre num trabalho de disuasão, num trabalho de luto da imagem e do
imaginário, num trabalho de luto estético, na maior parte do tempo
falhado, o que provoca uma melancolia geral da esfera artística, que
parece sobreviver na reciclagem da sua história e dos seus vestígios.»
Situando-se num universo já globalizado, Alexandre Melo reconhece que
«os artistas têm razão para se sentirem inseguros». Admite que «o
artista não sabe o que faz. É um problema institucional». Refere o
«colapso dos paradigmas estéticos», e «a falência das concepções fixas
e essencialistas da identidade». Mas fica por esclarecer se ele se
reporta à extinção das corporações ou ao fim das academias.
(Em simultâneo com um texto crítico de Celso Martins, "Corpos à procura")
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