1 . A inauguração do Museu do Neo-Realismo - hoje, sábado, dia 20 - é um acontecimento importante. Preparado desde há muitos anos - ver - e antecipado por muitas iniciativas, contando no seu acervo com diversos espólios literários (e mais os de Mário Sacramento, Orlando Costa e Alves Redol, agora doados), constitui uma grande prova de resistência, já em tempos de democracia, consagrada à memória da luta cultural de anteriores gerações de resistentes em mais difíceis condições políticas. Implantado num dos seus principais lugares de afirmação, Vila Franca de Xira, é também um pólo de diferenciação e afirmação cultural e patrimonial da cidade, a que autarcas de diferentes orientações (PC e PS) deram sequência.
Seja o que for o NR, frente cultural da oposição à ditadura ligada ou próxima do PC, movimento literário e artístico (com diferentes tempos de constituição e vigência), designação de circunstância e sempre de uso problemático reivindicado por (ou atribuído a) diferentes autores que problematizaram e procuraram renovar o que seria a tradição realista, ele é sem dúvida um tópico dinamizador da reflexão sobre o século XX e sobre a criação artística que defendeu a sua capacidade de intervenção face aos grandes acontecimentos que o marcaram, nas décadas decisivas que vão dos anos 10 aos anos 60 - décadas associadas à ideia de vanguarda política e artística.
2 . É por considerar a iniciativa relevante e o NR um tema com importância que convém colocar algumas questões, centradas na área das artes plásticas.
Uma exposição de desenhos e pinturas neo-realistas é quase sempre, e talvez inevitavelmente, uma exp. com muitas medíocres e péssimas obras de arte. Esta não foge à regra.
Não querendo ser uma exp. de conteúdos documentais (com edições, manifestos, testemunhos, fotografias, projectos, etc), mas apenas de obras de pintura, desenho, escultura e gravura - que, aliás, podem em muitos casos serem em si mesmo e no essencial vistas como documentos), o risco era maior. (O mesmo sucede com a generalidade das exp. surrealistas e aí é mais frequente não autonomizar as "obras de arte").
Os anos 40-50, que são o fulcro do movimento, são tempos de escassa e muito difícil produção, face a uma quase inexistência de mercado de arte (e ausência de encomenda institucional), e são também anos apenas de inícios de carreiras prometedoras ou só de temporárias actividades de quem não chegou a ter carreira artística.
Se em muitos casos não se ultrapassou na prática o nível das boas vontades ou dos propósitos (a militância cívica, por exemplo), também se põe neste caso a dificuldade adicional que constitui por si mesmo a expressão realista (ou neo-realista, por mais deformação que se proponha adicionar à necessidade da "mimesis", cópia da realidade, entendida no sentido alargado que lhe deu Erich Auerbach, em literatura). Dificuldade maior face a outras direcções onde a importação de modelos e regras e o exercício de fórmulas ou formulários simplificados permite compensar mais facilmente a falta de adestramento, de habilidade ou capacidade (as linguagens primitivistas, a não representação, a geometria não requerem iguais mestrias no exercício do desenho - como sucederá de novo com os realismos mediáticos dos anos 90). A cópia da realidade, criticamente entendida, é mais difícil e arriscada do que a cópia (a importação, a "tradução") de estilos - o neo-realismo "plástico" não é "um estilo" importado, e o caso português (com a sua precocidade no II pós-guerra - logo em 1945 - e com a originalidade da sua conjunção de referências externas - mexicanos, realistas americanos, modernismo europeu, mestres históricos, etc - torna-o bem patente). A uma maior exigência oficinal corresponde um maior número de falhanços visíveis.
3. Outro factor decisivo é ter-se naturalmente condicionado aqui a selecção ao maior número possível de obras na posse do Museu (entre um terço e metade), contando-se também com o acervo do CAM que é particularmente pobre neste domínio, e ainda com o acesso a um pequeno número de coleccionadores particulares. Tão ou mais relevante é o facto de se ter tornado corrente abdicar a crítica (ou os comissariados) de qualquer vontade ou competência judicativa (ou, noutra hipótese, não se trataria de abdicar mas de não dispor delas, ou de não ter qualquer aprendizagem que as viabilize). Reivindicando um papel de mero mediador entre a obra e o público, a própria ideia de que existem obras medíocres ou péssimas é intencionalmente ignorada, uma vez que se trataria apenas de interpretar, não de distinguir e escolher segundo critérios argumentados de qualidade. Ou tratar-se-á só de ilustrar temas e conteúdos, para o que serve igualmente o melhor e o pior (...aliás, o pior é melhor porque é mais literal, unívoco, directo). Note-se que esta posição tem uma grande aceitação institucional porque é muito mais económica e fácil de entender por quem tem só um contacto superficial com o assunto: a excelência é rara, é exigente e é cara (mesmo só em preços de seguro).
A opção por uma sequência de núcleos temáticos marca o programa dos comissários David Santos e Luisa Duarte Santos: Campesinato, Faina marítima, Excluídos, Operariado, Guerra, Desespero, Política, Maternidade, Cenas do Quotidiano, Festa. Alguns destes núcleos fazem-se com apenas três ou quatro obras, mas quase sempre com a inclusão de peças desenhadas de Manuel Filipe e Jorge Oliveira que pesam muito sobre a baixa qualidade média do conjunto. Se a representação da escultura (José Dias Coelho, Vasco Pereira da Conceição, Maria Barreira) é confrangedora - apesar de tudo, sobreviveram algumas peças de maior interesse -, também sucede que a montagem geral muito acumulada teria permitido um salutar exercício de escolha, tanto mais que a exp. principal da inauguração ("Batalha pelo Conteúdo", essa de carácter documental) optou por dar grande visibilidade a um escasso número de peças emblemáticas.
A diferença de critério é paradoxal: onde se justificaria acumular (documentar, multiplicar a informação) escolheu-se um itinerário pontuado por poucas obras, e onde se deveria escolher (esse é o papel do historiador de arte, se não for o do crítico) jogou-se no excesso e na indiferenciação.
Importa referir rapidamente a abrangência da selecção, que inclui o brasileiro Portinari (uma das referências do NR) e também Júlio Resende, que nunca aceitou participar em iniciativas do movimento, ao mesmo tempo que restringe o horizonte temporal ao seu tempo organizado, quando outros artistas se foram reivindicando mais tarde de idênticos propósitos (Armando Alves, Relógio, Espiga Pinto entre outros). É outra divergência com a exp. documental, que prossegue até ao 25 de Abril.
Ficam para depois as questões decisivas e obviamente associadas dos "conteúdos" (da "prevalência dos conteúdos", que foi taxativamente contrariada pelos mais importantes promotores e críticos do neo-realismo nas artes plásticas, Mário Dionísio e Júlio Pomar) e da simplificação panfletária a que dá lugar o título "Uma Arte do Povo, pelo Povo e para o Povo" (uma fórmula de Júlio Pomar, de Janeiro de 1947, num contexto político que se encerra logo com a prisão de toda a direcção do MUD Juvenil, poucos meses depois). Pode der um título emblemático mas seria conveniente não deixar oculta a vertente da "batalha das formas".
A oposição ao formalismo, o qual, na aparência, ganhou a guerra fria dos anos 50 (Greenberg e a abstracção americana), não deve dar lugar ao espantalho de um "conteudismo".
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